06
de dezembro de 2012 | N° 17275
J.
A. PINHEIRO MACHADO
O campanário de
Combray
Borges
de Medeiros, então presidente do Estado, certa manhã, atraído pelo ruído de um
motor, foi à janela e viu, com espanto, no pátio do palácio... um automóvel! Um
dos poucos, raros e caros automóveis da Porto Alegre da época. Para aumentar o
espanto, quando a porta do carro se abriu, desceu impávido o secretário da
Fazenda. De imediato o passageiro da novidade foi convocado ao gabinete.
–
Belo carro! De quem é? – começou Borges, com cautela.
– É
meu! – disse o secretário, orgulhoso.
– O
senhor recebeu alguma herança? – perguntou Borges, com um sorriso polido.
–
Não...– Ganhou na loteria? – Nãão... – Então, está demitido.
Não
se trata de uma fábula moralista. Certas coisas, em tempos imemoriais, eram
assim, simples, claras e diretas. O exemplo é do próprio Borges e de Flores da
Cunha, dois nomes que exerceram o poder de forma incontrastável, muitas vezes
abusando do arbítrio: ambos chegaram ao governo pobres e morreram pobres.
Por
certo, os tempos são outros. Mas há um mundo perdido que, teimosamente, resiste
no imaginário. A avó de Proust (na verdade a avó do Narrador) via no campanário
de Combray “o que para ela, tinha mais valor no mundo: naturalidade e
distinção”. Esses dois valores parecem representar com simplicidade, mas com
excepcional precisão, aquilo que gostaríamos de reconhecer num dirigente
político.
Qualidades
singelas que, afinal, é o que esperamos de um amigo, ou simplesmente de um
vizinho de porta. Naturalidade, a qualidade ou caráter do que é natural, por
certo é o oposto da hipocrisia e da dissimulação. Distinção nos lembra correção
de procedimento e dignidade. A naturalidade, sem a distinção, é oca. E o
inverso, a distinção sem a naturalidade verdadeira, é uma pose insuportável.
Conheço
alguém que exerceu um cargo importante na administração pública durante certo
tempo – com correção, para dizer o mínimo. Certo dia surpreendeu os amigos,
demitindo-se e nos disse: “Vou sair enquanto estou virgem”. Com elegância,
lembrou Dante para justificar sua amargura: “Sempre havia boas frases para
transformar a sombria descida ao inferno da corrupção numa luminosa entrada no
paraíso”.
A
melhor prova de que não faltam tentações é o espantoso crescimento, rumo aos
10%, do mercado de artigos de luxo no mundo. O Brasil está na pole position de
uma pobre lista: México, Azerbaijão, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, África do
Sul, Turquia, Vietnã... Segundo a Fondazione Altagamma (associação comercial de
bens de luxo da Itália), as vendas de bens de luxo em todo o mundo “estão
superando a agitação na Eurozona e os temores de desaquecimento nos mercados
emergentes”, devendo exceder a marca de 200 bilhões de euros em 2012. A dúvida
é inevitável: de onde vem todo esse dinheiro?
Vale
lembrar outra vez Proust, que, contra o desencanto, não renunciava à esperança,
e buscava dentro de si “terras reconquistadas ao esquecimento, que convalescem
e novamente se materializam”.
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