sábado, 9 de abril de 2016



09 de abril de 2016 | N° 18495 
DAVID COIMBRA

Como fazer algo para sempre

Tinha um bar, ali no Floresta, que diziam que era um bar do Lupicínio.

Não sei se era mesmo dele, nem lembro bem onde ficava, já passei por tantos bares na vida.

O certo é que era numa daquelas ruas bonitas e desvalorizadas da região.

Se Porto Alegre fosse uma cidade com melhor planejamento urbanístico, o Floresta se tornaria um dos lugares mais aprazíveis do sul do mundo. Aquele belo casario, aquelas ruas arborizadas, o pequeno comércio do entorno, tudo poderia ser mais bucólico.

Foi lá que surgiu a Sociedade Floresta Aurora, clube que conta parte da história do Brasil.

A Floresta Aurora foi fundada por escravos antes da Abolição. O objetivo inicial era auxiliar as famílias de cativos e alforriados quando algum parente morria, mas a sociedade ganhou força e logo se transformou em referência para a comunidade negra. Lá aconteciam os “bailes dos morenos”, como se dizia.

A Floresta Aurora era o contraponto afro das sociedades germânicas que se multiplicaram pela cidade no fim do século 19 e no começo do 20. Isso de se reunir em clubes era coisa de alemão. A Sogipa, o Juvenil e o próprio Grêmio foram criados por inspiração de descendentes de alemães.

O Floresta também era um bairro germânico, e a casa em que funcionava o tal bar havia sido moradia de uma família de alemães. Mas, como já disse, não recordo da localização exata.

O que a minha memória traz gravado daquele bar foi algo que lá se passou comigo e com dois de meus amigos.

Era uma noite em que tínhamos muito pouco dinheiro.

Está certo: isso não era novidade, nós nunca tínhamos muito dinheiro. Mas naquela noite em especial tínhamos ainda menos do que o normal.

No bolso direito das minhas calças US Top havia uma nota solitária, e eu precisava de troco para tomar o Linha 20 de volta para casa. Os outros dois amigos juntaram os seus caraminguás, umas notas amarfanhadas que na época chamávamos de PTBs. Contamos e concluímos que dava só para um único prato de feijão mexido e duas Malzbier, que era mais barata.

Dizia-se, então, que Malzbier era boa para mulheres em fase de amamentação. Dava leite. De onde será que tiraram aquilo? Alguém acredita que uma cerveja preta pode dar leite?

Em todo caso, sempre gostei de Malzbier, só que não dá para tomar mais do que uma: doce demais.

Nós sentíamos grande fome naquela noite, e alguma sede. Pedimos o prato solitário de feijão mexido e as duas Malzbier. O garçom estranhou:

– Só um feijão?

Suspirei:

– É... Não estamos com muita fome...

Ele sorriu e foi para a cozinha.

Enquanto esperávamos que voltasse, debatemos rapidamente se não seria melhor ter comprado uns dois cachorros-quentes com nosso dinheiro. Mas foi uma dúvida fugaz. Queríamos ouvir os músicos do bar cantando Lupicínio.

“Nunca, nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim, as pazes contigo eu farei.”

Não sei se o garçom ouviu aquela conversa. O que sei é que, quando ele chegou, fez aterrissar na mesa não um, mas três pratos de feijão mexido.

Olhei para ele:

– Nós pedimos só um... Em resposta, ele ergueu da bandeja outra travessa e botou na minha frente:

– Pedi uma saladinha de alface e tomate pra vocês. E saiu, sem esperar por agradecimento.

Ficamos olhando para nossos pratos. Um animado morro de feijão mexido fumegante, encimado por dois ovos fritos luminosos.

Ainda hoje posso sentir o que senti: o prazer de misturar tudo da forma como minha mãe sempre criticou, quando estávamos à mesa: – Parece um estivador!

Eu era um estivador, sim, senhor. Piquei o tomate bem picadinho, e a alface também, e espetei com a ponta do garfo a gema do ovo, deixando que o creme amarelo escorresse pelo negro do feijão. E então reuni parte da mescla no garfo e... ah... que delícia aquele primeiro bocado.

Eram talvez duas horas da madrugada, estávamos tão somente com o dinheiro das passagens garantido, mas nos sentíamos bem. Ao microfone, alguém cantava que a saudade dissesse àquela moça, por favor, como fora sincero o seu amor. E sobre a mesa tínhamos uma cervejinha preta, um feijão mexido com ovo frito e uma boa conversa de amigos do peito. Num canto, o garçom nos observava detrás de um sorriso. Estava satisfeito porque nos fizera felizes naquela noite.

Já disse e repeti: não me recordo de muita coisa do bar. Mas recordo da generosidade daquele homem. Um gesto de bondade numa noite perdida. E continua comigo. Comigo continuará para sempre.

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