quarta-feira, 20 de abril de 2016


20 de abril de 2016 | N° 18504 
DAVID COIMBRA

O Ken humano


Uma das coisas fascinantes que descobri acerca do mundo é que sobre sua superfície existem vários Kens humanos.

Esse Ken, caso você não saiba, é um boneco que namora a Barbie, que também é uma boneca, e essa você deve conhecer, porque ela é bem famosa.

O Ken, na verdade, é um coadjuvante, porque meninas não gostam de brincar com bonecos, só com bonecas. Quem brinca com bonecos são os meninos, mas não com o Ken, que é um boneco mesmo, todo arrumadinho e com o cabelo armado. Meninos brincam com soldadinhos ou super-heróis ou transformers ou, para os meninos antigos, o Falcon. Alguém aí se lembra do Falcon? “E os cabelos parecem reais!”

Essa história de bonecos versus bonecas me faz pensar que há teorias modernas sobre gênero completamente furadas. Qualquer pessoa que conhece criança sabe disso. Meninos são diferentes de meninas praticamente desde o nascimento. Com exceções, claro. Mas, quando você trata diferentes como iguais, comete erros e injustiças. Ou gera graves distorções.

Aqui, na Nova Inglaterra, na fronteira com o Canadá, está engastado o Maine, um Estado que tem como lema um slogan que significa, mais ou menos, “mantenha-se esquisito”. É um Estado bicho-grilo. Por lá, há gente que não usa energia elétrica, alimenta-se apenas com grãos e vota em Bernie Sanders.

Alguns casais do Maine criam os filhos sem distinção de gênero. Os nomes são neutros, o tratamento é neutro, tudo é neutro. Pobres criancinhas. Elas olham para a natureza e veem grandes leões com juba e leoas menores sem juba, veem cadelas parindo e cachorros se comportando com mais agressividade, veem galinhas botando ovos e galos com crista cantando ao alvorecer, o mundo, sobretudo o mundo dos mamíferos, está dividido entre o que é masculino e o que é feminino. E elas, o que são? Não são nada. Nem uma coisa, nem outra. É evidente que suas personalidades sofrerão fraturas importantes até a adolescência.

Mas os terráqueos realmente são estranhos. E aí volto ao Ken humano.

Vi fotos dos Kens humanos. Vi fotos do original também, o boneco de pano e plástico, do qual só me lembrava pela ótima ponta que fez no filme Toy Story. O Ken humano que mais se parecia com o não humano era um brasileiro que morreu aos 20 anos de idade, de câncer. Fiquei sabendo que esse Ken brigou com outro Ken. Ambos queriam ser o verdadeiro Ken, e por essa razão discutiram bastante nas redes sociais, até que uma emissora de TV promoveu o encontro dos dois e eles fizeram as pazes. Gostaria de ter visto esse programa. Sobre o que conversariam dois Kens? Moda? Casinhas? Trocariam intimidades a respeito da Barbie?

Kens devem ser pessoas intrigantes. Afinal, os bonecos, em geral, são feitos à imagem e semelhança dos seres humanos. Lembrem-se do Falcon: “E os cabelos parecem reais!”. Mas os Kens são o contrário: eles são humanos que tentam se parecer com bonecos, que foram concebidos para ser parecidos com humanos.

Na disputa dos Kens, um queria ser mais originalmente falso do que o outro. Eu sou menos humano do que você, era o que argumentavam.

Por que essa ânsia?

Para ter uma personalidade. O homem passa a vida tentando ser um indivíduo, tentando ser diferente da multidão, tentando ser reconhecido pelas outras pessoas. Nem que seja como uma imitação de uma falsidade. É isso que importa. O que importa é ser um.

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