segunda-feira, 4 de abril de 2016



04 de abril de 2016 | N° 18490 
DAVID COIMBRA

A neve é bonita


Nevou em abril. Não é comum, especialmente depois de um inverno pouco agressivo, como foi o deste ano.

Sabia que ia nevar, a previsão do tempo não erra, mas, ainda assim, a primeira visão que tive da rua, ao abrir a cortina do quarto logo de manhã, arrancou-me do peito um ah de surpresa. A neve branca cobrindo o solo, o céu muito azul e o amarelo do sol se derramando por tudo. Bonito.

Schopenhauer dizia que o que um homem sente ou deixa de sentir não depende do mundo exterior: depende do que lhe vai na alma.

E é verdade. Duas pessoas passando por situações absolutamente idênticas podem ter reações totalmente distintas. Então, o que importa não é o que está fora; é o que está dentro. Mas o que está fora bem pode ajudar o que está dentro.

Lembro-me de uma vez em que me reuni com um cronista político de Santa Catarina num restaurante da Beira-Mar Norte, na Ilha. Era um homem grave, que pouco ria. Jamais o vi fazendo alguma gracinha. Durante o almoço, em meio à conversa, ele de repente olhou para fora, para o mar que rosnava do outro lado da rua, e murmurou, mais para si mesmo do que para mim:

– É um privilégio...

O inesperado do comentário deixou-me levemente atônito. Seguimos com o assunto. Minutos depois, entre uma garfada e outra na tainha, ele mais uma vez ergueu o olhar para o horizonte e repetiu:

– É um privilégio... Isso aconteceu umas quatro vezes.

Aquele deslumbramento com uma paisagem que ele provavelmente via todos os dias era algo de certa forma enternecedor. Um homem tão sério deixava-se comover pelo mar que ia e vinha sem parar, por uma manifestação comum da natureza. Foi um depoimento a favor dele.

Essas grandes empresas, aqui dos Estados Unidos, em geral mantêm suas sedes em imensos arranha-céus. A hierarquia do funcionário da empresa é medida pelo andar que ele ocupa. Quanto mais alto o andar, mais alto o cargo do funcionário. O presidente fica lá em cima, no topo, na chamada penthouse.

Por que isso? 

Porque, em tese, quem está no andar superior tem o “privilégio”, como diria o cronista catarinense, de contemplar, quando quiser, a mais bela vista. Só que, não raro, as mesas dos chefões estão viradas de costas para a janela. Ou seja: ele olha para a porta e quem se encanta com a vista é seu visitante.

A vista, portanto, serve mais para impressionar quem chega do que para embevecer quem está.

Um homem de costas para a janela, vigiando a porta. Eis um homem de espírito armado.

No domingo, admirando essa neve que provavelmente será a última, até que o ano termine, cogitei se ainda é possível contar aos meus compatriotas sobre as amenidades de um belo dia cheio de luz, cheio de cores e suavemente frio. Será que os brasileiros, tão ocupados com suas próprias dores, tão atentos à porta e não à paisagem, não acharão banal se eu disser que a neve é bonita?

Decerto que sim. E talvez seja mesmo banal. Mas hoje achei importante dizer isso para você: estou olhando para a neve. E a neve é bonita.

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