segunda-feira, 25 de abril de 2016


25 de abril de 2016 | N° 18508 
DAVID COIMBRA

A unha do dedão do Valdir


Era o Geisel o presidente, quando tiramos aquela foto no campo do Alim Pedro.

Ou será que já estávamos sob o tacão de Figueiredo?

Não, não, é certo que era o Geisel, que o Paulinho está bem guri na foto. O Paulinho e o Valdir são dois irmãos que jogavam sempre de pés descalços. Por algum motivo, a unha do dedão do pé direito do Valdir se adaptou à vida ao ar livre e se modificou... estruturalmente. Como o pescoço das girafas, que se adaptou à necessidade que elas têm de comer as folhas das copas das árvores da África. É óbvio que aquele pescoço é uma improvisação.

Já contei que um dia alimentei uma girafa? Dei-lhe comida na boca. Estava num parque da África do Sul, e o funcionário disse que eu poderia pegar a ração de um saco que lá havia e oferecer à girafa. Confesso que me acometeu meio receio. Olhei para a girafa imensa, do tamanho de uma casa e pensei: e se ela estiver de mau humor? Mas todos me olhavam, então reuni os brios que tinha no fundo do pâncreas, tomei da ração e fui. Ergui a mão bem alto. A girafa moveu graciosamente seu pescoço para baixo, numa curva suave, fez surgir da bocarra uma grande língua azul e, com uma única lambida, capturou a comida e a engoliu. Fiquei com a mão toda melecada, mas foi divertido.

É assim a vida selvagem.

Mas estava falando da unha do dedão do pé direito do Valdir. Ela se desenvolveu, enrijeceu e tornou-se afiada feito gilete. O Valdir riscava as canelas dos atacantes com aquela unha. Era uma arma que ele tinha. Dizem que um dia furou uma bola de couro número 5 com ela, mas acho que é lenda.

O Valdir era meio corcunda.

Há um detetive corcunda, na ficção policial. É o personagem dos livros de C.J. Sansom, que escreve histórias deliciosas, ambientadas na Inglaterra de Henrique VIII.

Esse Henrique VIII é dos meus reis prediletos. Não só por ter tido seis esposas, e sim por ser uma figura carismática e imprevisível. Henrique foi considerado o príncipe mais belo da Europa, mas, coroado, começou a comer. E comia e comia. Sendo também muito ativo, pouco engordava. Um dia, porém, sofreu um acidente e machucou a perna. Não pôde mais fazer exercícios, e aí passou a engordar com grande velocidade. A velhice o encontrou morbidamente obeso, mal cabendo no trono e emanando um cheiro de putrefação da perna constantemente inflamada.

Há muitas histórias boas de Henrique VIII. Histórias de reis são interessantes, porque eles mudam a vida de milhões. De certa forma, é como um presidente no Brasil. E aí retorno ao Geisel.

Geisel era uma figura intrigante. Morreu-lhe um filho, e ele nunca mais se recuperou. Uma vez admitiu: – Na minha vida, fui sempre um infeliz.

São raras as cenas em que aparece sorrindo. Era homem controlado, de hábitos arraigados. Todos os dias, depois do almoço, recolhia-se ao quarto, no Alvorada, tirava o terno, vestia o pijama, deitava-se, dormia meia hora, levantava-se, tirava o pijama, vestia o terno e voltava ao trabalho. Todos os dias.

Geisel foi ditador, certo. Mas agora diga: examinando a questão de acordo com o contexto, sua atuação foi positiva ou negativa para a democracia? Porque Geisel assumiu garantindo que faria a abertura “lenta, gradual e segura”. E fez. Foi um inimigo da linha dura dos militares. Resistiu, inclusive, a uma tentativa de golpe (de verdade) tramada por Sylvio Frota.

Demorou. Foi lento e gradual. Mas o Brasil conseguiu a Anistia, o fim do AI-5 e da censura, os porões da tortura foram desmontados e, depois de Figueiredo, o poder voltou aos civis.

Ao mesmo tempo, Geisel foi visceralmente autoritário. Ainda que trabalhasse pelo retorno à democracia, governou como perfeito ditador. A História com agá maiúsculo é complexa. Mas volto ao assunto amanhã.

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