08 de abril de 2016 | N° 18494
MÁRIO CORSO
Surraterapia
A palestra não era longe e a prefeitura mandou um motorista. Saímos cedo, para alguns a noite ainda não acabara. Passávamos por um usuário de crack quando o motorista sugeriu que aquilo se curava com uma “camaçada de pau”.
Contei-lhe um caso que vivi de perto, no interior, nos idos dos 70. Um pai soube que seu filho usava drogas e não teve dúvida, aplicou-lhe uma sova. Mas o filho retornou aos mesmos amigos e aos mesmos hábitos. Veio a segunda dose. Tampouco surtiu efeito e não houve chance de uma terceira porque o rapaz foi embora. Como a cidade era pequena, todos se inteiraram do drama. As informações sobre o seu paradeiro eram desencontradas e nada de ele voltar. Até onde sei, pois eu mudei de cidade, nunca mais se soube dele. Aquela família murchou de dar pena.
Na estrada, a conversa rendia. Relatei vários casos do passado, quando a internação forçada por drogas era legal, que se revelaram um desastre por criar um afastamento físico ou subjetivo da família. Tive pacientes que passaram por isso e a experiência foi sentida como um castigo, uma surra simbólica. Enfim, se a droga pode trazer problemas, a maneira equivocada e apressada de como abordamos o problema pode piorar o que já é ruim. E que, por ouro lado, existem os que convivem com as drogas sem dramas, vão e voltam delas sem incomodar ninguém, nem afundar sua vida.
Como o motorista seguia aferrado à ideia da eficácia da surraterapia, lhe perguntei se ele tinha recebido dos pais essa modalidade terapêutica. Disse que sim. Fora pego mentindo e o pai lhe bateu, e que não o amava menos por isso. Assegurava que a lição lhe garantiu o caráter que tem.
Na minha opinião, respondi, talvez o que operou não fosse a surra, mas uma postura firme do pai lhe mostrando que o tinha em grande consideração e esperava dele um comportamento decente. Porém umas palavras duras poderiam ser igualmente efetivas. Acredito que um pai batendo revelava mais uma fraqueza das suas posições – e uma limitação da sua capacidade de argumentar – do que de uma força moral.
Entendo a vontade desse motorista e de tantas pessoas para colocar um limite na marra aos usuários de crack. Há algo neles que nos desacomoda. As pessoas mais vulneráveis às drogas geralmente são sacos vazios, perderam suas referências e a droga lhes drenou o resto de vitalidade. Estão desgarradas do que já lhes fez sentido um dia. Ao ver o que se tornaram, brota-nos uma necessidade de fazer algo, colocá-los nos eixos. Como trazê-los de volta é que é a questão.
O que sei é que a encarnação de um pai violento os deixaria ainda mais longe do mundo que perderam. Aliás, eles estão levando uma surra da vida, deveriam apanhar ainda mais?
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