terça-feira, 26 de abril de 2016


26 de abril de 2016 | N° 18509 
DAVID COIMBRA

Um sonho tão caro que se esfumou


Adistância impessoal e fria do futuro é ótima para ver o tamanho exato de algumas coisas. Mas nem todas. 

É perfeita, por exemplo, para perceber insignificâncias. Por que os atenienses deram cicuta para Sócrates beber? Por que Spinoza foi excomungado do judaísmo? Por que as Bruxas de Salem foram enforcadas? Por que Oscar Wilde foi preso?

Se você investigar, esbarrará em motivos irrelevantes. Só que, encaixados nos devidos contextos, todos esses casos que parecem comédias se transformam em tragédias.

As brigas que você já teve na vida, se você observá-las de longe, verá que foram ridículas. Dificilmente uma briga não é ridícula. Às vezes, passados alguns anos, você nem se lembra do motivo pelo qual brigou. Mas, na hora, não há nada mais importante do que vencer a discussão.

Tenho certeza de que esses nossos tempos serão vistos pela posteridade como tempos estranhos. Não apenas porque as pessoas estão brigando muito, mas pela causa da briga: pela primeira vez, na história do Brasil, um governo tem torcedores.

Algumas pessoas amam o PT como a um clube de futebol, e o defendem com fervor tocante, mesmo quando a realidade mostra que não existe defesa possível. Esses defensores em geral não são do “povo” que os petistas acreditam beneficiar; são intelectuais, gente bem-fornida da cidade.

Por quê? Por causa de Lula.

Lula é a realização do sonho do intelectual de esquerda, que idealiza o “povo”, o mundo e as relações humanas. Lula seria o operário de origem humilde, enrijecido por uma história de superação e dotado de infalível instinto de fera política. Lula conheceria aquele ser que arranca suspiros dos intelectuais: o “povo” tão explorado, tão simples, mas tão sábio.

O intelectual de esquerda olha para o “povo” como olha para os índios. Esses dias vi, numa novela da Globo, uma atriz interpretando a professora que explica aos seus alunos como os índios são bons, respeitam a natureza, são alegres e puros, enquanto um intelectual de esquerda, do lado de fora da sala, ouvia o discurso e sorria com condescendência. Que cena sintomática! Ali estava representado o ideal do intelectual de esquerda. Para o intelectual de esquerda, índios e “povo” não são Homo sapiens ambiciosos e competitivos como todos os demais. Não. Por serem “simples”, eles são inocentes como crianças.

Mas, devidamente “conscientizados” pelos intelectuais, alguns homens do “povo” podem fazer a reunião dessa pureza intrínseca com o conhecimento dos segredos das almas de seus iguais, tornando-se, assim, líderes abençoados.

Esse é Lula.

Para o intelectual de esquerda, venerar um líder operário é cultuar seu próprio ideal de vida. Ele acredita realmente que, com “luta”, com brios, com heroísmo, é possível alcançar um mundo igualitário habitado por homens singelos e dignos, que trabalham duro, mas alegremente, enquanto que ele, intelectual de esquerda, observa vigilante, do alto da sua cultura superior.

A ideia de juntar num partido o líder carismático egresso do povo com intelectuais sábios é muito cara ao intelectual de esquerda. Por isso, Lula e o PT surgirem como iguais a todos os outros é insuportável para alguns. Donde, tanta briga, tanta confusão. Mas vai passar. E, lá do futuro, as pessoas vão olhar e dizer, algum dia: não era preciso tanto...

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