sábado, 16 de abril de 2016



16 de abril de 2016 | N° 18501 
DAVID COIMBRA

Arroz com caldo de pêssego

Meu avô gostava de derramar no prato de arroz uma colherada do caldo do pêssego em conserva.

Lembro da cena como se a estivesse vendo agora. A calda doce escorrendo do monte de arroz, ao pé do qual estava deitado o bife dourado-escuro, ele comendo com prazer e minha avó observando, satisfeita.

Essas conservas, quem as preparava era ela. Minha avó era uma cozinheira incomparável. Ao escolher esse adjetivo, incomparável, não o fiz só para sublinhar que era ótima cozinheira. Não. Quero dizer precisamente isto: que não existe comparação da comida que ela fazia com nenhuma outra. Claro, tem a comida da mãe, mas comida da mãe não conta, porque, bem, é da mãe.

Minha avó, a realização dela era cozinhar. Passava o dia inteiro na cozinha, mas nem pense em desembestar com discurso feminista: ela adorava. O que haverá de lhe dar mais satisfação do que ver as pessoas de seu afeto se deliciarem com algo que você fez com as próprias mãos?

E minha avó fazia bem. Ela era a avó ortodoxa, estilo Vovó Donalda, a avó de que toda criança precisa, avó sem tatuagem, que não acredita que o homem foi à Lua, que manda a gente levar um casaquinho antes de sair, que se preocupa quando o neto está muito magrinho.

Gordura era sinônimo de saúde, para aquelas avós d’antanho, quando se cozinhava com banha e se usava apóstrofo. Ela encontrava alguém na rua e depois comentava:

– Vi o Wianey hoje. Está bem gordo, bem bonito! As pessoas tinham de comer à grande e engordar prosperamente.

Minha avó fazia ela mesma o pão que comíamos no café da manhã, fazia a massa, a melhor massa que jamais provei, melhor do que as que comi nos bons restaurantes de Roma. Minha avó ia ao galinheiro no fundo do quintal, levantava a galinha e lhe roubava o ovo para fritá-lo na banha do porco que ela própria havia matado, porque, sim, minha avó tinha aquela implacabilidade germânica com os bichos domésticos, bicho era para ter utilidade, ou não se tinha bicho.

Havia uma grande parreira no quintal, e sob ela nós tomávamos café da tarde nos verões. Daquela parreira minha avó arrancava os cachos de uva preta pequena, tipo Isabel, e delas extraía o suco e delas produzia a schmier e delas até fermentava o vinho. O quintal da casa dos meus avós era autossustentável.

Na casa da minha avó não havia telefone, a televisão só era ligada à noite. O rádio, sim. Ela e meu avô ouviam rádio o dia inteiro. Mas só o meu avô ouvia notícias. Minha avó gostava de música e de radionovela e de um programa de histórias de terror que me galvanizava, chamado Aconteceu.

O mundo da minha avó era aquele ali: a casa, o quintal, seus bichos, seu fogão, sua família, os vizinhos, uma ida até o açougueiro do outro lado da rua, ao mercadinho na esquina, um passeio com meu avô num fim de tarde de sábado. Estava tudo bem assim. 

Hoje, nesta vida tão fremente do século 21, com tudo acontecendo a todo momento, sem parar, com os brasileiros se ofendendo mutuamente por causa de políticos chinfrins, com tantas discussões que não levam a parte alguma, hoje fico pensando se ainda haverá pessoas como ela. Se é possível alguém sentir-se feliz apenas por preparar uma comida saborosa e observar a pessoa que ama comer com prazer. Mesmo que seja algo estranho, como arroz branco temperado com caldo de pêssego.

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