segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016



01 de fevereiro de 2016 | N° 18432 
DAVID COIMBRA

A catedral

Todo mundo gosta de pizza. Era o que vinha dizendo, com a elevada intenção de tecer considerações acerca da política nacional. Aliás, a respeito da pizza, isso de pizzaria por toda parte não é algo que sempre existiu em Porto Alegre. O que sempre existiu em Porto Alegre, no ramo gastronômico, eram os restaurantes alemães, hoje em veloz extinção, como se fossem pássaros dodôs.

Porto Alegre já foi uma cidade de belos traços germânicos, como uma Vera Fischer em horário nobre. O maior arquiteto de Porto Alegre de todos os tempos era alemão: Theo Wiederspahn. Foi ele quem fez os prédios do Margs, dos Correios e Telégrafos, da Casa de Cultura Mario Quintana, o atual prédio da Tumelero, antes chamado Edifício Ely, a Cervejaria Brahma, hoje Shopping Total, entre muitos e muitos outros. O melhor da arquitetura de Porto Alegre é obra de Theo Wiederspahn. Ele fez tanto sucesso, era tão admirado, que despertou os demônios esverdeados da inveja entre os porto-alegrenses. Começou a ser perseguido. Faliu. Perdeu o registro de arquiteto profissional. Teve de se homiziar na igreja Luterana, para a qual passou a trabalhar.

Em meio a essas tribulações, deu-se o misterioso episódio da construção da nova Catedral Metropolitana. Algum investigador criterioso ainda vai esclarecer o que ocorreu neste caso pontuado de equívocos e desacertos. O primeiro erro foi a decisão de demolir a suave igreja colonial que servia de matriz. O solo abaixo dessa igreja, como soía acontecer no tempo do Brasil Colônia, servia como campo santo: os mortos eram enterrados sob o piso do templo, para que fossem abençoados pela eternidade. 

Como os escravos eram sepultados em cova rasa, envoltos apenas pela mortalha fina, quando desabavam temporais, como o que se abateu sobre a cidade no fim de semana, era normal que pernas, cabeças e braços putrefatos brotassem da terra no grande barranco que desce até a antiga Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado.

Mesmo assim, a igrejinha fazia uma bonita evocação do nosso primeiro passado, como uma avó veneranda, e devia ter sido preservada. Que construíssem a catedral ao lado, ou em outro sítio. Mas, não. Puseram abaixo nossa memória.

Foi estabelecido um concurso a fim de escolher o melhor projeto arquitetônico para a nova catedral. Venceu o do arquiteto Jesus Corona, que imaginou um edifício imponente, com cinco torres góticas erguendo-se mais de 70 metros cada uma, em direção ao céu de azul anil. Essa ideia não agradou aos arquitetos locais. Para piorar a situação, o arcebispo começou a ter desavenças com Corona, que, dizem, era anarquista. Corona acabou desclassificado. 

Em seu lugar, resolveram usar o projeto de Theo Wiederspahn. Mas Wiederspahn era luterano e trabalhava para a “igreja rival”, por assim dizer. O arcebispo não estava feliz. Resolveu o problema enviando o projeto para o Vaticano. O italiano e católico Giovanni Giovenale tomou o projeto, fez algumas alterações no acabamento e mandou-o de volta. É ele quem assina a catedral, que, de resto, é bem bonita também.

Essas e outras decepções terminaram por rasgar profundas feridas na alma de Wiederspahn. Ele foi se entristecendo, se entristecendo, até que se viu dominado pelo cão negro da depressão. Theo morreu com pouco mais de 70 anos de idade, no começo dos anos 1950. Dizem que de desgosto.

Mas, puxa vida, não era de Theo Wiederspahn que queria falar. Queria falar da pizza e da política brasileira. Vou ter que deixar para amanhã.

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