02 de janeiro de 2016 | N° 18402
PAULO GERMANO
Quando a culpa é da vítima
Já adianto que não é um texto sobre estupro nem sobre abuso, mas preciso fazer um preâmbulo sobre isso para chegar aonde quero. Bem rapidinho.
Com a explosão desse novo feminismo nas redes sociais, aprendemos em 2015 palavras até então meio estranhas. E nenhum desses neologismos – como sororidade (o pacto de união entre as mulheres), empoderamento (aumento da participação política e social) ou objetificação (ato de tratar alguém como objeto) – me pareceu mais oportuno do que culpabilização.
A culpabilização da vítima, você deve saber, ocorre quando uma mulher é responsabilizada pelo abuso que sofreu. Quer dizer: se ela for estuprada, alguns dirão que, ora ora, ninguém mandou usar roupa curta, ninguém mandou andar na rua tão tarde, ninguém mandou se portar como vadia. Caso apanhe do marido, bem, talvez ela até goste, ou teria pensado nisso antes de casar. Uma estupidez, claro.
Mas quando a expressão foi criada em inglês pelo sociólogo William J. Ryan, em 1971, culpabilização da vítima nada tinha a ver com feminismo. No livro Blaming the Victim, Ryan analisou como a classe média americana enxergava os negros pobres. E concluiu que enxergava assim: como responsáveis pela própria pobreza. Poucos, na classe média, reconheciam os 250 anos de escravidão ou a posterior segregação racial como fatores determinantes para a desigualdade econômica – a maioria apontava a preguiça, a vagabundagem, a bebedeira e outras escolhas pessoais como causas da desgraça alheia.
Ou seja, culpa da vítima: o pobre era pobre porque queria.
Condenar quem se deu mal sempre foi uma prática habitual na história da humanidade. Há uma abundância de bons exemplos no Antigo Testamento, que bota catástrofes naturais e tragédias de todo tipo na conta das vítimas pecadoras.
Embora o feminismo tenha se apropriado do termo para falar de estupro, essa culpabilização apareceu em outros tristes episódios de 2015. Depois dos atentados em Paris, importantes líderes de toda a Europa, além de 25 governadores dos Estados Unidos, exigiram a suspensão da entrada de refugiados em seus países por receio de ataques terroristas. Na prática, jogaram a culpa sobre as maiores vítimas do terrorismo – gente sem casa, sem comida e sem dignidade que se viu comparada, por esses líderes, aos assassinos de suas próprias famílias.
Aqui no Rio Grande Sul, quando 10 pessoas – eu disse 10 pessoas – foram mortas em Porto Alegre e Alvorada em um intervalo de 13 horas – eu disse 13 horas –, o secretário estadual da Segurança Pública, Wantuir Jacini, respondeu assim:
– Olha só, a maioria dessas vítimas tinha antecedentes criminais.
Traduzindo: não é do governo a culpa pela insegurança, é de quem morreu.
Falando em governo, o voto foi o assunto que mais rendeu culpabilizações de vítimas no ano que passou.
– Votou na Dilma e quer reclamar? Agora aguenta! – Parabéns a quem votou no Sartori: a culpa é sua!
Que chatice, parem com isso. Quem votou em um mau governo é tão vítima dele quanto quem votou em outro candidato: todos sofrem igualmente com os embustes de uma má administração. Na verdade, o eleitor de um mau governo talvez seja a maior de todas as vítimas, porque confiou e acabou tapeado pelos culpados de verdade.
Uma vítima sempre vai precisar de apoio, nunca de um dedo na cara – seja uma mulher violentada, um refugiado em pânico ou um eleitor frustrado. Se 2015 foi o ano da culpabilização, esse neologismo esquisito, que 2016 seja o daquela palavrinha mais fácil, que a mãe nos ensina desde pequenos:
– Desculpa. Desculpa por ter te culpado.
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