terça-feira, 5 de janeiro de 2016

 

05 de janeiro de 2016 | N° 18405 
PAULO GERMANO

O super-herói que procuramos


Havia cueca por cima da calça, uma capa imponente, máscara preta e cinto de utilidades. Elementos indispensáveis para um super-herói de respeito. Ele fitou satisfeito o caderninho, onde recém terminara de desenhar o próprio uniforme, depois se aproximou da janela do quarto e olhou para fora: a lua cheia derramava um brilho suave sobre as palmeiras da Osvaldo Aranha. Sorveu um gole de ar e disse, para si mesmo:

– Me aguarde, Bom Fim. Me aguarde!

Poucos dias depois, Capitão Bonfa estava nas ruas. Foi um caso real, surpreendeu Porto Alegre entre 2012 e 2013. Durante alguns meses, um rapaz de 20 e poucos anos cuja identidade ninguém conhecia saiu a socorrer necessitados da Redenção à Independência. Ajudava senhoras a atravessar avenidas, resgatava animais perdidos, carregava sacolas, alertava para o cocô do cachorro, dava atenção a quem quisesse.

Arauto da gentileza, paladino da cortesia (inventei agora esses epítetos), Capitão Bonfa distribuía apitos a moradores e comerciantes durante as suas rondas diárias. Havia um código: bastavam três assobiadas para que o super-herói aparecesse esvoaçando sua capa azul. Uma tarde qualquer, após ouvir o chamado, encontrou um homem ajoelhado em uma garagem, com dois baldes d’água no chão.

– Me ajuda a lavar o carro? – Meu senhor... – sorriu Capitão Bonfa para o abusado. – Há profissionais mais qualificados para esse serviço.

Sua missão era estimular boas práticas, o convívio saudável em sociedade. Nas poucas entrevistas que deu, ressaltou que seu sonho era ver novos super-heróis surgirem em outros bairros da Capital. Como jornalista, alimentei a expectativa de noticiar o Super-Floresta, o Doutor Centro, a Guerreira do Cristal, o Homem Moinho, a Feiticeira da Azenha, quem sabe até as Três Figueiras Fantásticas e a Incrível Aliança Auxiliadora.

Seria encantador, seria inspirador, imagine uma espécie de Liga da Camaradagem, uma corrente voluntária de heróis disseminando valores que, embora tão simples, hoje parecem perder espaço para uma intolerância galopante, para uma hostilidade preocupante, imagine o sopro de esperança, imagine o afago nessa sociedade abrutalhada, mas nada disso deu certo, houve um problema, e o problema foi uma facada no peito de Capitão Bonfa.

Soube disso no ano passado.

No Facebook, onde ele mantinha um perfil com nome falso – porque a rede social não aceitava o seu codinome –, Bonfa me disse que passou dias no hospital após ter sido “atingido por um marginal”. Mas ele sempre jurou que jamais enfrentaria bandidos, que reconhecia a limitação dos seus poderes, que sabia o seu papel.

– Tive que tirar o pé da rua. Pretendo, sim, voltar um dia – escreveu o herói inativo e, desde lá, não respondeu mais, parou de atualizar seu perfil, nunca mais visualizou minhas mensagens.

Não conheci Capitão Bonfa de perto, portanto jamais poderia especular sobre o que houve de fato. O que sei, apenas, é que a gentileza perdeu de novo. Se ainda dá tempo de desejar alguma coisa para este ano, quero algo concreto: quero um movimento, quero um super-herói, quero um líder lutando contra a estupidez nauseante que avança sobre a política, sobre as redes sociais, sobre o convívio entre as pessoas. Prometo aderir à luta, mas tornou-se necessária uma ideia concreta para vencer essa intolerância.

Uma ideia que parta de alguém que, com uma dose de idealismo, também sonhe com a Liga da Camaradagem.

* O colunista David Coimbra está em férias.

Nenhum comentário: