09 de janeiro de 2016 | N° 18409
CLÁUDIA LAITANO
Ninho de memórias
Há um trecho no documentário sobre a vida de Ingrid Bergman (1915-1982) em que aparecem na tela várias imagens da atriz com uma câmera na mão – registrando férias em família, a lua de mel, as brincadeiras dos filhos, os bastidores das filmagens. Se vivesse nos dias de hoje, Ingrid Bergman talvez fosse daquele tipo de celebridade que tem milhões de seguidores no Instagram. O mundo inteiro saberia, instantaneamente, onde ela estava passando as férias e o que o seu chef multiestrelado havia preparado para o almoço. Ou não. Talvez fosse do tipo que guarda para si as miudezas cotidianas, preservando a vida privada da curiosidade – nem sempre muito saudável – do restante da humanidade. Nunca saberemos.
O que podemos, sim, inferir do delicado documentário Eu Sou Ingrid Bergman, em cartaz em Porto Alegre, é que fotografias e filmes caseiros, assim como diários, papéis antigos e as cartas que trocou ao longo da vida, eram uma espécie de porto seguro para um espírito desacomodado. A estrela de Casablanca (1942) nasceu na Suécia, onde se casou e teve uma filha. O sucesso no cinema levou-a a mudar-se para os EUA com a família – que acabaria abandonando quando se apaixonou por outro homem, o cineasta italiano Roberto Rossellini, durante as filmagens de Stromboli (1949).
Alguns anos mais tarde, deixou para trás os três filhos que teve com Rosselini na Itália para mudar-se para a França, agora com o terceiro marido, o produtor Lars Schmidt, de quem se separou poucos anos antes de morrer. Trocou várias vezes de casa, de país e até de família, mas nunca se separou das fotos, das cartas, dos filmes caseiros. Filha única, Ingrid Bergman perdeu os pais ainda criança, e as velhas fotografias de infância, do tempo em que eles ainda viviam, eram sua referência afetiva, seu eixo em meio a tantas mudanças. Seus filhos podem nunca ter vivido em um lar convencional, mas com suas fotos e filmes caseiros a mãe criou para eles um ninho de memórias aconchegantes que sobreviveria inclusive a sua morte – e para onde eles sempre poderiam voltar.
Hoje aprendemos a associar a fotografia com a celebração do presente. A família reunida, o casal apaixonado, as férias perfeitas, todas essas imagens que desfilam pelas nossas redes sociais, porém, muito provavelmente não estarão mais disponíveis daqui a 50 anos – e não apenas porque as frequentes mudanças de tecnologia nos fazem desconfiar da permanência a longo prazo dos suportes digitais, mas porque a nossa própria relação com o passado e com o que podemos chamar de “tradição” está mudando.
Na época em que Ingrid Bergman viveu, havia a sensação de que o passado nos dava sentido e propósito, ainda que para cada um fazer da sua vida exatamente o contrário do que era esperado – como no caso da inquieta Ingrid Bergman. Cada velha fotografia parecia dizer: este é o lugar de onde você veio, estas são as pessoas que o formaram, esta é a matéria original a partir da qual você vai construir seu destino do jeito que quiser e puder.
Tudo isso parece estar perdendo espaço para o fetiche do eterno presente. De tão absorvidos que estamos com o aqui e agora, o passado nunca esteve tão distante.
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