segunda-feira, 4 de janeiro de 2016



04 de janeiro de 2016 | N° 18404 
L. F. VERISSIMO

Ornitologia

O escritor americano nascido no Canadá Saul Bellow disse certa vez que era um pássaro, não um ornitólogo. Querendo dizer que fazia seus romances, mas pouco entendia da teoria do romance. Era um ficcionista, não um ensaísta, e não esperassem outra coisa dele.

Bellow estava sendo falsamente modesto ou exageradamente autocrítico, pois pertencia a um seleto grupo de escritores – John Updike, Italo Calvino e Vladimir Nabokov são outros exemplos – tão bons críticos quanto romancistas, uma estranha estirpe de pássaros ornitológicos. Híbridos como eles são raros, em qualquer profissão. Poucos jogadores de futebol conseguiriam descrever, em termos de física aplicada, o que fazem com uma bola. Imagine o Garrincha num quadro-negro, explicando, com gráficos, uma jogada sua. Ninguém era mais pássaro do que Garrincha.

Bellow, Updike, Calvino, Nabokov e poucos outros fizeram sua literatura e escreveram sobre a literatura dos outros com a mesma maestria. Talvez sua experiência como pássaros informasse suas incursões pela teoria. Alguém já disse que crítico é aquele cara que fica assistindo à batalha de uma colina e, quando a batalha acaba, desce ao vale e atira nos sobreviventes. Um escritor seria mais benevolente com o trabalho de um colega.

Sobre a diferença entre a prática e a teoria, me lembrei da história da faxineira do labirinto. Todos os dias, a faxineira entrava no labirinto, varria seus corredores, limpava o que havia para limpar, lustrava o que havia para lustrar e, terminado o seu serviço, ia para casa. Um dia, a faxineira encontrou um grupo de turistas aflitos dentro do labirinto. O grupo estava havia horas procurando a saída, em vão. Corredores davam para corredores que davam para corredores que terminavam em paredes sem saída. A faxineira poderia ajudá-los a encontrar a saída? Claro, disse a faxineira. E começou a dar direções.

– Vocês peguem a direita aqui, depois a esquerda, depois a... Não. Peguem a esquerda aqui, depois a direita, depois outra vez a direita... Ou será a esquerda? Meu Deus, eu não sei como sair do labirinto!

A faxineira nunca tinha se dado conta porque não precisava.

CHICO

Ouço que tem sido comum a plateia aplaudir no fim de uma sessão do filme sobre o Chico. Difícil precisar o que está sendo aplaudido: a beleza do filme do Miguel Faria, a qualidade da música e dos intérpretes, a personalidade do Chico... Ou talvez seja algo indefinível, uma espécie de autocongratulação do público por se sentir numa clareira de talento e sensibilidade em meio à estupidez crescente, o Brasil que ainda não desistiu do Brasil aplaudindo a si mesmo.

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