27 de janeiro de 2016 | N° 18427
PEDRO GONZAGA
GUERRA E PAZ
No verão dos meus 18 anos, crente de que meu destino era ser um intelectual, impus-me dominar Guerra e Paz, supertrunfo das discussões literárias. Eu vinha lendo Kundera, Llosa, Kafka, García Marquez, Dostoiévski. Enquanto escrevo, revivo o afeto por esses autores, aqueles que o coração guarda, aqueles que me formaram como leitor.
Os livros da adolescência – quaisquer que sejam eles – têm como missão primeira prolongar a fantasia da infância, erguer a ponte para esta inesgotável brincadeira de adultos que é a literatura. Um intelectual, no entanto, quer séria a brincadeira, quer discutir-lhe as regras, ser especialista no jogo.
Eu, intelectual, naquele verão em Capão da Canoa. Ali estavam os dois volumes robustos, de letras miúdas, com seus canhões na sobrecapa. Eu tinha um mês. Determinei-me, soberbo, quarenta páginas por dia.
Tudo parecia certo, mas não previ um inimigo oculto: as cartas que eu escrevia, compostas com esmero, em papel almaço, para três improváveis pretendidas – eu tentava escapar ao que os meus alunos hoje chamam de friend zone. Honestamente, não sei por qual das três estava apaixonado. As cartas, contudo, prejudicavam meu ritmo.
Nos 10 últimos dias, a meta precisou ser alterada para 60 páginas. Foi quando me perguntei qual era o sentido daquilo tudo. Suspendi as cartas, imoladas ao altar da intelectualidade, aferrei-me à meta. E venci. Venci, mas quase nada lembro da grande obra do mestre russo. Venci, mas as três moças voltaram a receber apenas boletos em suas caixas de correio.
O que ganhei naquele verão, no entanto, só mais tarde o descobri. Sempre que era chamado de intelectual, ou pensava-me um (o que é bem pior), sentia não alegria, mas desconforto. Por sorte, um dia me dei conta de que a gênese da sensação estava no Tolstoi da praia, naquela pretensão de uma ridícula disputa de prioridades entre vida e literatura, quando ambas devem ser aliadas. Acima de tudo, eu errara nas proporções entre uma e outra. Deixem-me colocar a ideia numa máxima, válida pelo menos até o Carnaval:
Amores únicos, leituras múltiplas. Amores longos, leituras breves.
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