quinta-feira, 14 de janeiro de 2016


14 de janeiro de 2016 | N° 18414 
DAVID COIMBRA

Do que o mundo precisa


Dona Ethel morreu. Dona Ethel, já escrevi sobre ela, ela tinha 103 anos de idade. Faria 104 em agosto. Dona Ethel era dona de uma pequena loja na Harvard Street. Não se podia dizer que fosse uma tabacaria, porque cigarros não vendia. Talvez um “armarinho”, na definição de seus tempos de mocinha. Lá havia cartões, brinquedos, quinquilharias do tipo que via na minha infância num lugar perto da casa do meu avô, uma lojinha com um nome que me fazia cismar: Ao Carancho.

Dona Ethel era judia-polonesa. Fugiu da guerra em 1939, homiziou-se nos Estados Unidos e por aqui ficou. Casou-se no mesmo ano e, no mesmo ano, abriu a loja com o marido. Nunca deixou de trabalhar, e o fazia com alegria. Dona Ethel atendia com um pequeno cartaz colado ao peito, onde se lia, escrito à mão: “Eu amo os meus clientes”.

Os clientes também a amavam. Sua morte, se não causou choque, espalhou consternação pela comunidade. Muitos desconhecidos mandaram flores para a família. As pessoas passam na frente do armarinho e ficam olhando tristemente através das vitrines, como que esperando vê-la lá dentro.

Eu às vezes ia à lojinha de dona Ethel e comprava qualquer coisa de que não precisava só para conversar um pouco com ela. Comprei um carrinho com a tinta descascada para o meu filho. Comprei pistolas de plástico que disparam bolinhas de borracha. Comprei um baralho com fotos da II Guerra Mundial. Dona Ethel sempre me recebeu com afeto.

Soube ontem de sua morte. Fiquei triste. Mais pelo mundo, que está menos agradável sem ela; menos por ela, que viveu uma vida agradável, além de longa.

Aliás, sobre pessoas agradáveis: agora mesmo, quando estava no Brasil, li uma das seções de que mais gosto na Zero Hora, o Obituário, e lá deparei com a resumida história de outra senhora. Chamava-se Maria José de Bittencourt Alcalde, era dona de casa e morreu aos 84 anos. O texto breve contava que dona Maria José foi casada durante meio século com o seu Hildelbrando, a quem conheceu num bonde de Porto Alegre. E que ela era “uma cozinheira de mão cheia”. Fazia doce de abóbora, pudim de coco, ambrosia e musse de maracujá, o preferido do velho companheiro. Uma neta lembrou que ela adorava “tomar seu famoso traguinho de Underberg com cachaça” e que, num momento de dificuldade na vida, ajudou a família vendendo sonhos que ela mesma preparava.

A história de dona Maria José fez-me sentir uma macia melancolia. Deitei o jornal nos joelhos e olhei para o mar. Quase pude vê-la na cozinha, tirando da fôrma o pudim de coco. Sorri e suspirei. Deve ter sido bom ser neto de dona Maria José.

Dona Maria José decerto era uma pessoa agradável, como dona Ethel foi. E o mundo não precisa de muito mais do que isso. As pessoas não precisam lutar pela justiça, as pessoas não precisam vencer, as pessoas não precisam nem estar certas. Basta que sejam agradáveis, e já farão diferença. Os brados dos heróis, a grandeza dos defensores de causas, tudo isso observo a distância. Perto de mim quero a brandura. Quero mais donas Ethel e Maria José. Que falta elas farão. Que falta faz ao mundo um pouco mais de suavidade.

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