sábado, 9 de janeiro de 2016



10 de janeiro de 2016 | N° 18410 
ANTONIO PRATA

Refogar cebolas


A Mari entra na cozinha com umas cinco sacolas em cada mão: “Cês podem ajudar a descarregar?”. Estou refogando umas cebolas, ela passa os olhos por mim, “O Antonio não, claro” e sinto uma paz de espírito meio exagerada pra quem foi simplesmente liberado de tirar as compras do carro. Enquanto meus amigos vêm com caixas e caixas, neste primeiro dia na praia, sigo ali no fogão, mexendo a colher pra cá, mexendo a colher pra lá e pensando por que diabos tanto alívio por tão minúsculo habeas corpus. 

À medida que o refogado vai ficando translúcido, também se clarificaram as ideias: percebo que o alívio não vem daquela tarefa específica, mas de todas as possíveis e imagináveis incumbências que podem surgir enquanto eu refogar cebolas e das quais estarei liberado. Entendo, em parte, por que gosto de cozinhar.

Escrever dá trabalho. “Lutar com palavras/ é a luta mais vã”, já sabia o Drummond, “Entanto lutamos/ mal rompe a manhã”. Escrever quase sempre dá errado: “Luto corpo a corpo,/ luto todo o tempo,/ sem maior proveito/ que o da caça ao vento.” “Todo o tempo”, pois a caça é ininterrupta: no escritório, no chuveiro, na fila do caixa do Frango Assado da Carvalho Pinto – e “Cerradas as portas,/ a luta prossegue/ nas ruas do sono.” (Mundo mundo vasto mundo/ se eu tivesse prestado engenharia medicina arquitetura/ não seria uma rima e a métrica ia pro espaço, mas talvez fosse uma solução).

Ter filhos dá trabalho. Antes de eles nascerem você acha que vai botá-los num pedestal, vai contemplar o milagre da existência e depois vai continuar a ler Guerra e Paz com sua caneca na mão. (Gargalhada histérica). (Retomada de fôlego). (Mais um pouco de riso). (Travo melancólico). 

O negócio é que é meio difícil contemplar o milagre da existência – e definitivamente impossível ler Guerra e Paz – quando se está ocupado contando medidas de leite em pó, negociando colheradas de verduras por minutos de Peppa Pig ou tentando evitar que uma mãozinha recém saída da fralda cheia de cocô chegue à boca ou à barriga ou à parede, no escuro, às 3:47 da madrugada.

Não bastasse o fluxo contínuo de palavras, Aptamil, Peppa Pig e cacas mil, há ainda esses pequenos exus eletrônicos assoviando pra gente de dentro do WhatsApp, do Facebook, do Twitter, do email, do Instagram e de outros tantos anéis do inferno digital, ordenando, como uma assombração num filme B: “Venhaaa! Venhaaa! Venhaaa!” – e o pior é que a gente vai.

Então você começa a refogar cebolas: de uma hora pra outra, desaparece o burburinho ensurdecedor das demandas e só se ouve o crepitar dos cubinhos translúcidos no azeite. 

É preciso descarregar as compras, arrumar a casa, trocar as fraldas, responder emails, terminar o romance, dar share em notícias, colaborar em crowdfundings, fazer as pazes com o pai, perdoar a si próprio, ler Tolstói, arrumar as estantes, ganhar dinheiro, tomar vergonha na cara, perder a vergonha na cara, comer mais fruta, beber menos, cuidar melhor do seu amor, entender se, afinal, você faz da vida o que realmente deseja ou simplesmente boia num rio formado por sortes, azares, covardias, conveniências: mas agora não. Agora você só precisa refogar cebolas.

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