17 de janeiro de 2016 | N° 18417
MOISÉS MENDES
O penhasco e o cais
O lugar onde o adolescente Ricardo Somocurcio descobre que está apaixonado pela bela e misteriosa Lily não existe há muito tempo em Lima. Lily circulava entre as palmeiras e os canteiros de gerânios do Parque Salazar. Vargas Llosa conta a história em Travessuras da Menina Má.
O Parque Salazar dos anos 50 do romance do peruano ficava à beira do penhasco, no bairro de Miraflores. O mar estava ao pé da falésia, 80 metros abaixo. Nos anos 50 da adolescência de Vargas Llosa, aquele era o lugar mágico de Lima. À noite, guris e gurias escoravam-se num muro contemplando o Pacífico. Era o lugar do primeiro beijo, do primeiro passeio de mãos e das primeiras desilusões.
Em 14 de maio de 2000, Vargas Llosa escreveu um artigo com um lamento no jornal espanhol El País. Dois anos antes, o Salazar havia desaparecido para dar lugar a um shopping a céu aberto. Abriram um buraco de 20 metros de profundidade, com 150 metros de comprimento e 70 de largura. Como se a falésia fosse um bolo e tivessem cortado uma fatia gigante.
Naquela área rebaixada do parque, cravado no paredão, surgiu o shopping Larcomar. Fica na área mais nobre de Miraflores, o bairro chique de Lima. É algo estranho, agradável e perturbador.
Estranho porque fica abaixo do nível da rua. Agradável por ser aberto e estar ao lado do mar. E perturbador por usufruir de um lugar público em que a natureza foi ferida com agressividade para viabilizar um centro comercial.
“O Parque Salazar era o lugar mais bonito de Miraflores, talvez de Lima”, escreveu Vargas Llosa. A obra engolira boa parte da Costa Verde para fazer surgir “um terraço de cimento, que transformou o jardim em uma planície sem vida e sem caráter”. O shopping, disse, celebrava “a monstruosidade, o mau gosto e a prepotência arquitetônica”. O Larcomar raptara um lugar da sua memória.
São 80 lojas numa espécie de mezanino e no térreo em formato de meia-lua. Todas abertas, como lojas de rua. A área tem cinemas, teatros, cafés, restaurantes, galerias de arte e uma livraria. Os restaurantes estão na beira do penhasco. Senta-se, em áreas envidraçadas ou ao ar livre, com o mar lá embaixo.
Vargas Llosa via a Livraria Íbero como o deboche de um lugar que destruíra parte da cultura da cidade. Mas o Larcomar é hoje tão visitado pelos turistas quanto a catedral de Lima.
Não há risco de deslizamentos, porque não chove nunca em Lima. O estacionamento é subterrâneo. O projeto do arquiteto Eduardo Figari Gold produziu um milagre: os peruanos aceitaram o que parecia ser uma cicatriz irreparável no rochedo.
Ao lado, há o Parque do Amor, uma bela área de convívio com arquibancada para os namorados, criada como compensação pela perda do Salazar. Há dois anos, Vargas Llosa rendeu-se ao Larcomar. Sentou-se uma tarde na Livraria Íbero e autografou O Herói Discreto.
O que aconteceu em Lima pode acontecer em Porto Alegre, com a questionada revitalização do cais do porto? Aqui, a área é maior e o projeto arquitetônico é convencional, com shopping em área fechada e edifícios. Lá, diziam que o shopping seria um cavalo de troia, porque algo mais viria depois. E veio: o projeto de um hotel de 18 andares no penhasco, logo abaixo da área do shopping.
Ambientalistas, geólogos, urbanistas e moradores de Miraflores retomam agora um debate de 20 anos atrás. Não há muito o que fazer. O hotel já está em construção.
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