sábado, 30 de janeiro de 2016



31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Romance nas ruas


Desde muito tempo eu gosto de ler romances e contos sobre Porto Alegre. Podem ser mesmo ruins, que eu gosto igual. Tem alguma coisa de curiosidade histórica, mas com um viés pessoal. Minha finada avó materna, a vó Ziloca (Ladeira de Moraes em solteira, Loch depois de casada), era porto-alegrense, nascida em 1904, e por certo me influenciou nisso. Ela era uma boa leitora, mas não foi por isso: foi por comentários eventuais que fazia, sobre cenas da infância dela, por exemplo a casa do avô dela no Menino Deus da virada do século 19 para o 20.

Uma vez, nós creio que ali na Praça XV, talvez esperando um bonde, ela me apontou uma esquina e disse que, na revolução de 23 – eu posso estar agora misturando datas, mas acho que era – ela tinha trabalhado uns dias como voluntária numa enfermaria que ficava ali mesmo, e ela apontou. E eu vibrei.

Não é que adiante muito conhecer essas firulas do passado, mas sei lá, me dá um grande gosto saber essas coisas, de cotidianos extraviados, jeitos fenecidos de viver a cidade.

Esse gosto cresceu muito quando eu convivi com o também finado Aníbal Damasceno Ferreira. Grande conhecedor de firulas singulares, o Aníbal, por nada, me perguntava: “Mas tu não leu o Estricnina? Bá, tem que ler!”. E lá ia eu atrás do tal livro, publicado pela primeira vez em 1897 e republicado cem anos depois (já por minha iniciativa). Outro que ele me fez ler foi o raro As Loucuras do Doutor Mingote, do Martim Gomes, de 1932, se não me engano. E assim outros.

Uma vez dei de cara com o Estrada Perdida, do Telmo Vergara, romance também dos anos 30. Talvez tenha sido o Fábio Steyer quem me falou do livro, sobre o qual ele escreveu um belíssimo estudo, em seu doutorado. Até agora não me conformo de livros como esses não terem edição corrente.

(Ei, se tiver algum leitor com vontade de botar dinheiro a fundo perdido num projeto inteligente, que vai fazer muito bem para a saúde espiritual da cidade, por favor me procure que eu tenho uma ótima sugestão.)

Toda essa evocação meio nostálgica me veio agora a propósito de falar de um livro recentíssimo, saído ano passado, ganhador de importante prêmio nacional – o Jabuti. Se chama Quarenta Dias, saiu pela Alfaguara; a autora é Maria Valéria Rezende. E é freira. Sim, freira. Estranheza pouca é bobagem?

Pois olha só o enredo básico: no presente da narradora, ela está escrevendo as lembranças de um período algo alucinatório, vivido no passado não muito distante. O que aconteceu: ela, a professora aposentada Alice, moradora de João Pessoa, na distante (para nós) Paraíba, se muda para Porto Alegre. Motivo: sua filha única casou com um gaúcho, e os dois trabalham na universidade; e a filha vai ter filho, motivo para convocar a mãe-quase-vó a se mudar para cá, para ajudar com o nenê.

Alice não quer, mas acaba vindo. Não gosta do frio, sente falta do vento e do mar. É posta num apartamento que odeia instantânea e profundamente, por motivos que eu não posso contar aqui, para não cortar o barato do leitor que vem vindo. Mas esse desconforto não é tudo, aliás é quase nada diante da outra novidade: longe de sua cidade amada, longe dos amigos e da rotina adorável que lá mantinha, ela pelo menos tinha a esperança de viver o neto que viria. Só que não: intempestivamente, a filha avisa que rolou uma bolsa para a Europa, e ela e o marido não podem perder. A mãe podia ficar por ali esperando, certo?

Alice fica em Porto Alegre, mas a um preço que só lendo pra avaliar. Sem entrar em detalhes demasiados, ela passa a viver... na rua, sim, na rua porto-alegrense, por 40 longos dias. Uma loucura, de acordo, mas foi assim.

E o mais impressionante é que esse relato da rua real da nossa cidade foi todo colhido ao vivo, pela autora, que se fez passar por alguém nessa condição, para poder ter elementos autênticos, fortes, na composição do relato.

O resultado é bastante bom, embora narrativamente não seja excelente, porque a trama perde força lá pelas tantas e o livro tem alguma velocidade só pela inércia. De todo modo, é uma leitura que merece o empenho, para gente que gosta da cidade e, não menos, para ter uma notícia viva de lugares inesperados em Porto Alegre, como o Campo da Tuca, a Maria Degolada, a Rodoviária, marcos do mapa que em geral permanecem muito longe das páginas impressas.

*Luís Augusto FIscher é Professor de Literatura na UFRGS e escritor, autor de inteligência com dor (2009). Escreve quinzenalmente.

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