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terça-feira, 7 de abril de 2009
Arnaldo Jabor - Claudio de Moura Castro - O Globo - 07/04/2009
Acabou o tempo do "Deus lhe pague..."
Estamos perdendo a compaixão pelos pobres
Existe coisa mais triste do que menininhos de 6 anos fazendo malabarismo com bolinhas de tênis nos sinais de trânsito? Eles nos angustiam porque são prova do nosso fracasso. Nós evitamos vê-los; eles nos veem o tempo todo. Os miseráveis são nossa caricatura e damos esmola na esperança de uma salvação, mas eles não são generosos e não nos perdoam. Apenas um vago “Deus lhe pague”...
Antes, as esmolas faziam mais bem a nós do que a eles. A miséria tinha uma “função social”.
Hoje está fora de moda, a miséria não é mais um hype, a miséria está “enchendo o saco, não chove nem molha”. A gente se esqueceu da população trabalhadora dos morros, com operários, domésticas, faxineiros; ela só aparece violenta nas revoltas da Febem, nos tiros de bandidos.
A miséria armada está nos fazendo esquecer da miséria indefesa. Com a onda de violência, perdemos a compaixão pelos pobres. E, como ninguém sabe resolver o drama da miséria, surge até um vago rancor contra ela, pois ela teima em reaparecer.
Miséria não é igual em qualquer parte. A miséria em São Paulo não é estrelada, invasiva como a do Rio, onde os jardins suspensos das favelas nos olham do alto. Em São Paulo, a miséria também não é uma paisagem natural, como no Nordeste. Em São Paulo, a miséria é mais periférica e só entra para pequenos serviços — úteis paraíbas nas construções, no lixo.
No Rio, nossa pobreza já teve uma tradição, uma arte. Príncipes como Cartola, Nelson Cavaquinho, o samba. A favela paulista se atravanca em planícies. Não venta, não tem vista para o mar, não dança. É lama pura e dormitório para a mão de obra não qualificada. A miséria carioca tinha uma certa allure, bafejo de elegância.
Agora, só tem servido para criar uma “consciência da morte” nos pequenos e grandes burgueses (oh, céus!..). Hoje, temos esta “living art”, constante “instalação” de trapos e mãos postas. Nos “olhos azuis de brancos” (Lula dixit...), já vemos o sentido trágico da vida.
“O senhor aguenta esta fumaça na cara o dia inteiro?”, pergunto com os olhos vermelhos na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, às sete da noite.
“Respire fundo, vá, moço, respire fundo que passa, vá!”, diz o paraíba de meio metro que dirige o táxi. E ri de mim, de minha queixa ecológica.
Em volta, privilegiados encalhados no trânsito. Rostos mortos no volante. A fumaça cresce. Vingança dos miseráveis que construíram a cidade? Vingança de quem, esta fumaça? São Paulo é feito uma cebola. Não é apenas a Bélgica da Belíndia. É uma cebola de bélgicas cada vez mais fechadas, mais finas. Hoje, para sofrer menos, temos de usar antolhos para não ver o destino negro das cidades.
Uma vez, tive um encontro com um empresário e um americano antropólogo. Cinema, grana, outros papos. O empresário e eu falamos sobre o Brasil para o gringo: “Eles....
eles... eles...”. O Brasil estaria sendo destruído por “eles”. Até que o americano não aguentou mais de curiosidade e perguntou: “Who are they?” (Quem são eles?).
Parei, travado. Aí, descobri o óbvio triunfal: para mim, “eles” seriam os outros, as forças ocultas que desculpam nossa omissão. Todos nós falamos da desgraça nacional como se fosse culpa de seres impalpáveis: o Congresso, o governo, os americanos, os jornalistas...
Todos, menos nós.
Houve uma época em que a miséria nos tocava mais, ela era útil para nossa piedade, mesmo como tema para arte e literatura. A miséria sempre deu lucro. No Brasil, miséria é quase uma indústria. Quanto lucro uma igreja de charlatães tem com os dízimos? A miséria dá lucro politico; falar na miséria denota preocupação humanitária, traz votos populistas.
Antes, havia uma miséria “boa”, controlável.
Tínhamos pena, desde que ela ficasse no seu lugar, ela aplacava nossa consciência. Nos sonhos “revolucionários” dos pequenos-burgueses, a miséria era nossa bandeira. Sofríamos com ela. A miséria dos outros era nosso problema existencial. Iludíamo-nos achando que nosso sofrimento interior minorava o horror de suas vidas.
Na época éramos a favor de um socialismo imaginário, panaceia para nossos problemas e ficávamos tranquilos sem fazer nada. Mas nos enganávamos, achando que nosso mal-estar com a tragédia dos pobres ajudava-os em alguma coisa. Desde que caiu o socialismo, caiu a ilusão de que éramos úteis em pensamento.
Desde então somos habitados por um desalento pela ausência de formas de luta contra a injustiça.
Este desalento gerou um desconforto inicial, mas, aos poucos, deu lugar a um secreto cinismo quase doce. Hoje sofremos menos porque não adianta mesmo... Assim, passamos a cuidar de nossos jardins, nosso narcisismo, nossa arte pessoal de viver. O fim das ideologias é um alívio para a culpa.
Hoje, só nos resta tentar não sofrer com a miséria que nos cerca. As regras básicas estão no ar, no lar, no bar, como os mandamentos da felicidade pós-tudo — uma virtude negativa, fugitiva.
Todos começam com “não”: não olhar tragédias, não ler nem assistir a jornais, não ouvir conversa de câncer ou chacina, providenciar grades, carros blindados, companhias de segurança e as armas, se preciso. Chegamos a temer: “Se acabar o tráfico, vai ser pior — vão descer mais das favelas para o asfalto...” Alguns mais canalhas podem até pensar: “A única arma que luta contra a miséria é a fome.
A fome debilita, fragiliza e extingue tudo num genocídio branco, sem autores. A fome regula o mercado da pobreza. A fome é o grande freio à falta de planejamento familiar destes nordestinos eróticos”.
No entanto, depois de tantos vexames de nossa burguesia secularmente sórdida, vemos que nossa miséria “pobre” é a ponta de uma miséria maior. Não existem um mundo limpo e outro sujo.
Um infecta o outro. A burocracia é miséria, a corrupção é miséria, a estupidez brasileira é miséria. Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por todos os lados.
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