quarta-feira, 22 de abril de 2009



22 de abril de 2009
N° 15947 - JOSÉ PEDRO GOULART


A morte do Lilinho

Querida filha, só estou escrevendo esse texto porque tu ainda não sabes ler. Do contrário, eu não escreveria. É que tu ia ficar bem chateada em saber que o teu peixe, o Lilinho, morreu.

De modo que aquele que está o teu aquário agora, é bem parecido, mas não é o Lilinho. Tua mãe – as mães são assim –, sem que tu soubesse, resolveu comprar outro e pôr no lugar dele. Foi uma coisa bem rápida filha: tu acordou, contou que o Lilinho estava dormindo de maneira estranha, “de cabeça para baixo”, e logo vimos o tamanho do problema. Dormir e morrer é bem parecido. Só que na morte a gente não precisa mais escovar os dentes pela manhã.

Foi então que tivemos que decidir entre te contar a verdade ou driblar o destino. Deixar que essa fatalidade tomasse conta do teu coraçãozinho em formação ou desafiar as possíveis consequências de uma mentira como essa. E se tu notasse? E se tu viesse a perceber a diferença de tamanho? Ou pior, se descobrisse uma nadadeira a menos?

Ainda bem que nada disso aconteceu. Ainda bem, filha minha. Teus pais conseguiram adiar minimamente esse sentimento terrível que a perda dá. Usamos um pouco desse poder que dizem que só os deuses tem, e enganamos a morte. Sim, porque só sabe da morte quem fica.

Se “pra ti” o Lilinho não morreu é porque “ele” não morreu. Isso eu garanto. Morte não é algo que crianças tem que saber. Crianças, aliás, não deveriam saber de nada ruim – somente que os peixes nadam, que os passarinhos voam, e que os avôs avoam. (Desculpe, filha, não deu para fazer com teu avô o mesmo que foi feito com o Lilinho – ainda bem que tu era bem pequena e nem notou quando ele parou de escovar os dentes de manhã.)

“A vida é um curto-circuito entre duas escuridões” – quem disse isso foi um amigo do papai, chamado Vladimir Nabokov, um dia tu há de conhecê-lo. E eu sei que talvez tu demore a compreender o que ele disse, como talvez seja difícil de aceitar (para mim também é).

Por isso mesmo é que estou aqui, contando essa história. Para que tu um dia saiba que a tua mãe e o teu pai interferiram no circuito; e deixaram ele menos curto. Fica então uma dica pra ti, sempre que possível, interfere: nada precisa ser como é.

O Paulo Sérgio Guedes vai lançar no próximo domingo, às 19h30min, no Dado Bier do Bourbon Country, seu novo livro de poemas: Nada Precisa Ser como É. Como se pode ver, eu roubei a frase. É que a poesia alicia.

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