sábado, 18 de abril de 2009



18 de abril de 2009
N° 15943 - CLÁUDIA LAITANO


Velhos sátiros

Carlos Drummond de Andrade deixou três livros inéditos no pequeno escritório da Rua Conselheiro Lafayette, em Ipanema, onde trabalhou durante os últimos 25 anos de sua vida. Poesia Errante ainda não estava finalizado, e Farewell, como o nome entrega, deveria ser a despedida oficial, o último capítulo de uma carreira de mais de 60 anos de inestimáveis serviços prestados à poesia em língua portuguesa.

O terceiro original engavetado, O Amor Natural, era o prazer mais ou menos secreto de Drummond, uma coletânea de poemas eróticos que ele preferiu não publicar em vida. Na pasta de cartolina ordinária em que guardou os originais deste livro nascido para ser póstumo, Drummond colocou o artigo “O” sobre o “A” de amor, sugerindo, marotamente, a auréola sobre a cabeça de um santo.

Quando veio a público, em 1992, cinco anos depois da morte do poeta, O Amor Natural causou o previsível escândalo. São poemas escancaradamente despudorados, uma galeria de partes íntimas e de gestos lúbricos que dificilmente o leitor comum associaria à figura do velho poeta de físico franzino e temperamento discreto.

Entre bocas errantes, línguas inquietas, gritos e gemidos, Drummond celebra o sexo de forma viril e apaixonada, mas o inquietante do livro não é exatamente seu conteúdo erótico explícito, mas o fato de ter sido escrito por um senhor de mais de 70 anos, idade em que se esperam grandes questionamentos sobre o sentido da existência e a proximidade da morte, mas não versos como “Era manhã de setembro e ela me beijava o membro”.

No disco que lançou esta semana, Zii e Zie, Caetano Veloso, 66 anos, também escancara as urgências do desejo na maturidade sem ligar para as conveniências da idade – cantando versos, não exatamente memoráveis, como “Uma menina preta de biquíni amarelo/ Na frente da onda/ Que onda, que onda, que onda que dá/ Que bunda, que bunda!” (A Cor Amarela) ou “Tarado, tarado, tarado/ Tarado ni você” (Tarado Ni Você).

Um mundo, vasto mundo, de acontecimentos separa as gerações de Caetano Veloso e Carlos Drummond de Andrade. O primeiro viveu a juventude nos anos 20 e 30, quando uma nesga de perna entrevista no bonde já era suficiente para abastecer dias e noites de delírios eróticos. O segundo é da turma que inventou o “é proibido proibir” e terminou de desinventar o pecado.

Mas ainda que seus versos desbocados reflitam, inevitavelmente, todas as diferenças entre as duas gerações que dividiram o século 20 ao meio, talvez haja algo em comum nessa necessidade de falar de sexo de forma aparentemente tão abusada ali quando a passagem do tempo começa a impor ao corpo sua inevitável cota de limitações.

Para os mais jovens, a ilusão de que a idade neutraliza o desejo talvez ajude a suportar a ideia da velhice – o que explica, em parte, o desconforto que os velhinhos sacanas provocam, mesmo quando são artistas de talento.

Mas o que Drummond, mais radicalmente, e agora Caetano estão dizendo quando, de cabelos brancos, celebram o sempre renovado deslumbramento por peitos, coxas e bundas é que o sexo pode ser a mais divertida, e contundente, negação da morte – e que a anarquia do desejo, mais do que a esperança, provavelmente é a última que morre.

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