quarta-feira, 22 de abril de 2009



22 de abril de 2009
N° 15947 - DAVID COIMBRA


O carrasco, o machado e o condenado

A posteridade pingou um acento macabro no nome do doutor Guillotin. Teria sido ele o inventor da guilhotina, justamente ele, um médico, de quem se espera a preservação incondicional da vida. Mas Guillotin não inventou a guilhotina. Apenas defendeu com ardor sua utilização nas cerca de três mil execuções da Revolução Francesa. E o fez por caridade, como cabe a um médico, jamais por crueldade.

Até então as execuções eram muito dolorosas para os condenados. No enforcamento, a vítima ficava estrebuchando em agonia por, às vezes, 15, 20 minutos. Ontem mesmo o Sant’Ana lembrou que o carrasco de Tiradentes teve de saltar do patíbulo e se dependurar em seus ombros para aumentar-lhe o peso e assim lhe quebrar o pescoço, senão o homem não morria.

Na decapitação por machado a dor do apenado podia ser ainda maior, porque tudo dependia da habilidade do verdugo. Volta e meia o executor não acertava exatamente no pescoço, mas no lado do queixo, no meio do rosto ou nos ombros da infeliz vítima.

Neste 2009 comemoram-se 500 anos da ascensão ao trono da Inglaterra do rei Henrique VIII. Zero Hora inclusive publicou matéria a respeito, domingo passado. Henrique tornou-se célebre por sua quantidade de esposas (meia dúzia) e por desenvolver o inquietante hábito de enviar para o cadafalso pessoas com as quais desfrutava da maior intimidade, entre elas duas de suas mulheres e dois dos seus secretários pessoais que exerciam a importante função de primeiro-ministro.

Eram eles Thomas More, o humanista que escreveu um livro intitulado Utopia, de onde derivaram-se a palavra e a noção de utopia, e Thomas Cromwell, famosa raposa política do século 16. Cromwell caiu em desgraça por ter sugerido ao rei casar-se com uma dama que ele, rei, não conhecia. Um arranjo político, é evidente. Como monsieur Daguerre ainda não havia inventado a fotografia, Henrique pediu que um pintor fizesse o retrato da moça. Pintado o quadro, o rei analisou-o, refletiu, ponderou e terminou por aprovar a donzela. Contratou casamento.

Se vivesse em tempos de Internet, Henrique saberia que mesmo as fotos de corpo inteiro são enganadoras e que nada substitui o contato epidérmico. Quando viu a pretendente ao vivo, estremeceu. Era um bagulho de assustar criancinha. Aguentou o casamento por seis meses, ao cabo dos quais separou-se da dama e fez com que Cromwell se separasse de sua cabeça.

Como estava (com toda razão!) furioso com o secretário, ordenou que o algoz encarregado de cumprir a pena fosse um jovem inexperiente. O rapaz, decerto nervoso por estar prestes a operar um cliente célebre, só conseguiu decepar Cromwell após três tentativas, o que deve ter sido muito irritante para Cromwell, mas pelo menos deixou bem claro para todo o reino que Henrique VIII não ficava com mulher feia.

A destreza do carrasco era tão fundamental que Ana Bolena, outras das mulheres de Henrique VIII que escalaram os degraus do cadafalso, exigiu que seu executor fosse um certo francês considerado mestre no ofício. Esse francês não empregava o machado vulgar na degola, mas espada, e gabava-se de sempre, sempre!, atingir o pescoço da vítima de forma precisa, piedosa e indolor. E foi desta forma que ele despachou Ana Bolena para as páginas da História. Com um zap.

Lendo esses relatos da História, o momento que me vinha à mente ao pensar na execução da pena de morte era o do pênalti no futebol. Nada mais parecido, no âmbito do esporte. Nada mais capital. Dias atrás, ao assistir à entrevista do Ronaldo Nazario com Marília Gabriela, essa imagem consolidou-se em mim. Ronaldo, um executor frio e experiente, confessou que, na hora do pênalti, ele quase chega a vacilar.

– É um momento especial – admitiu. – Estão lá só você, a bola e o goleiro.

O centroavante, a bola e o goleiro. O algoz, seu instrumento de trabalho e o condenado.

É uma aflição, o pênalti. Quase uma tortura. Por isso, reprovo a paradinha; a bola tocada mansa e debochada, inalcançável ao goleiro; a cavadinha; o escárnio. Reprovo. Pênalti exige solenidade. Mais: pede piedade. Uma execução rápida e indolor é o que de mais humano pode-se pedir na hora de qualquer penalidade máxima. No futebol ou no jogo da vida.

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