quinta-feira, 16 de abril de 2009



Todos cantam a sua terra...

Autor(es): Cláudio Guimarães dos Santos - Folha de S. Paulo - 16/04/2009

A imensa passividade e um péssimo conceito de si caracterizam o brasileiro. O povo assiste, calado, aos escândalos mais chocantes

GILBERTO FREYRE e Darcy Ribeiro valorizaram, cada um a seu modo, a natureza mestiça do povo brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda realçou o caráter "cordial" da nossa gente, marcado por uma afetividade exuberante -mas nem sempre sincera- que compromete, muitas vezes, a objetividade nas relações interpessoais, sobretudo quando se trata de distinguir a esfera privada da pública.

Outros, como Antonio Candido, se debruçaram sobre o nosso "jeito malandro de ser", tão festejado pela MPB. Eu, porém, pedindo vênia aos pais fundadores das nossas ciências humanas, ousarei divergir.

Para mim, o que caracteriza realmente o povo brasileiro é a sua imensa passividade, à qual se alia um péssimo conceito de si mesmo. Essa baixa autoestima nos faz idolatrar o que provém do estrangeiro -especialmente dos Estados Unidos e da Europa- e desprezar o "similar nacional", ainda quando este é, de fato, o melhor.

Trata-se da conhecida "doença de Joaquim Nabuco" -como a chamava Mário de Andrade-, que é o fascínio irresistível pelas "luzes" do "Primeiro Mundo".

Quanto à passividade, ela não poderia ser mais evidente. O povo assiste, calado, aos escândalos mais chocantes: na "high society", é o gangsterismo que viceja, sem vergonha, por entre orgias gastronômicas, degustações enológicas e colunas sociais;

no Legislativo, são as velhas negociatas que maculam, ainda mais, a imagem dos congressistas; no Executivo, seja qual for o nível, é a manipulação politiqueira do Orçamento, é o uso eleitoreiro dos recursos, é o retorno quase nulo, sob a forma de serviços, dos tributos excessivos; no Judiciário, além da lentidão, é a estranha condescendência, cada vez mais comum, com a retórica capciosa de alguns advogados, que desfiguram, pelo uso sofístico, os baluartes constitucionais da cidadania -como o direito ao habeas corpus ou ao devido processo legal-, os quais só valem para os poderosos.

A passividade do povo brasileiro chega a ser tão absurda que não é raro verificarmos a reeleição de figuras corruptas pelos mesmos ingênuos eleitores que, "ainda ontem", por elas haviam sido ludibriados. É o popular "me engana que eu gosto"...

Trata-se, penso eu, de um traço bastante constante da nossa personalidade coletiva, que nos tem acompanhado ao longo da história, ainda que com algumas exceções: umas mais violentas -como Palmares, a Balaiada, a Cabanagem, Canudos, o Contestado, a revolta da Vacina ou a guerrilha dos anos de chumbo; outras mais pacíficas -como o Fora Collor e as Diretas-Já. Além do mais, pouquíssimas dessas revoltas contaram com a adesão significativa da população brasileira, sofrendo, antes, a sua veemente condenação.

(Que nos baste, como exemplo, recordar o que se deu com os raros cidadãos que, de armas na mão, realmente se insurgiram, com "fibra de herói de gente brava", contra o regime militar - ainda que alguns deles, é verdade, almejassem a instalação de uma outra ditadura, só que de índole marxista: iludidos com a perspectiva de um maciço apoio popular, ficaram todos a ver navios, já que a maioria dos brasileiros não deixou de usufruir as migalhas do "milagre econômico", nem muito menos de festejar os "heróis" da Copa de 70, pouco se importando se o "pau comia solto" nos subsolos do poder.)

Se quisermos, portanto, ser sinceros, precisaremos admitir que a revolta aberta e franca nunca foi mesmo o nosso "forte", ou, por outra, se ela o foi alguma vez, vem deixando de sê-lo a cada dia.

Em vez dela, preferimos uma cerveja gelada, um bom pagodinho, um sofá e uma TV, a mesa do botequim. Briga mesmo só se for pelo time do coração -assim reza o triste lema desta "pátria de chuteiras", que se afunda mais e mais na indiferença e na apatia.

Todavia, teremos de ser sempre desse jeito? Não nos será jamais possível, nem mesmo num remoto futuro, neutralizar o escravismo e a cultura clientelista que, desde o início, nos macularam o sangue, debilitando-nos o caráter?

Não lograremos nunca dar um basta a essa elite bandida, decapitando, se necessário, ainda que metaforicamente, as suas "cabeças coroadas"? Ou decerto não o faremos precisamente porque, lá no fundo, nós de fato idolatramos esses mesmos que nos pisam, só por sabê-los capazes de conquistar o que desejamos e que não ousamos assumir?

E quanto à nossa autoestima? Até quando nos sentiremos "losers", totalmente por baixo, só por falarmos português? Desde o 7 de Setembro, nós somos um país. Falta-nos, ainda, embora poucos o saibam, virarmos uma nação. Longe vá temor servil!

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS, 49, médico, psicoterapeuta e neurocientista, é escritor, artista plástico, mestre em artes pela ECA-USP e doutor em linguística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França).

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