quinta-feira, 30 de abril de 2009



30 de abril de 2009
N° 15955 - PAULO SANT’ANA


Malfuf e quibebe

Vivo dizendo que as comidas de que mais gostamos são aquelas que nos eram servidas quando éramos crianças.

Comigo é o que se dá. Por isso que em toda parte que vou me atiro com sofreguidão a qualquer quibebe que me apresentam.

De dois em dois dias, a minha madrasta servia quibebe para nós. De início, estranhávamos que aquela papa de abóbora destoava do restante da comida: o quibebe é doce, não é salgado.

Mas, depois que fomos nos acostumando, não havia nada mais delicioso que o quibebe.

E, até hoje, onde deparo com o quibebe, a minha comida está feita.

O guisadinho de carne com molho de tomate, coroado de ervilhas doble zero, é também um ponto alto das minhas memórias gustativas. Quando minha madrasta tinha tempo para fazer a farofa, então o guisadinho de carne se tornava uma bênção que maravilhava as nossas vidas.

Às vezes, consigo rememorar um dos instantes mais sagrados da minha vida, quando minha madrasta nos servia o pimentão recheado de guisado.

Telefono vez por outra para o Restaurante Gambrinus, no Mercado Público, para encomendar um pimentão recheado: ele tem de ser feito com bastante antecedência de tempo, mas quando é servido, com arroz, a gente se sente no céu.

O pimentão mais clássico é o verde, mas também o vermelho e o amarelo sabem ser macios e deliciosos quando bem cozidos. Também me ocorre um dos pratos mais saborosos da lavra de minha madrasta: o malfuf.

Parece que é uma comida árabe. Trata-se de um trouxinha de folha de repolho recheada de guisado, que pode ser presa por um palito, a exemplo de outra delícia inesquecível da minha infância, o bife enrolado no toucinho, que ainda se pode relembrar no Restaurante Copacabana.

O que não esqueço é que os melhores pratos da minha infância tinham molhos ou então eram servidos molhadinhos, caso do carreteiro de charque.

Os molhos, o guisado e o arroz são ingredientes inseparáveis das minhas melhores recordações culinárias.

Sem falar nos doces. Como renunciar hoje, mesmo diabético, aos papos de anjo com calda ou úmidos, um cravo de corolário, aos ovos-moles ou baba de moça, aos olhos de sogra preparados como em ourivesaria por minha madrasta?

Como não recordar o arroz de leite com canela, muitas vezes com gemada? Que coisa boa!

E onde minha madrasta se sublimava era no sagu com calda de creme. Além de comer a minha cota, na madrugada eu ia furtar outra parte na geladeira.

Lembra bem o Moisés Mendes que todas as semanas comíamos canjica com leite ou com vinho, servida em potes ou até mesmo em pratos fundos.

Que mundo de açúcares, que mar de glicemias, ninguém é feliz impunemente. Tanto, que toda a minha infância foi marcada por latas de leite condensado furadas por um prego ou por uma ponta de faca e depois sugadas por inteiro, até a última gota.

E, quando não tinha doce na casa, havia o último e sublime recurso da gemada. Açúcar e mais açúcar. Dizem que nada tem a ver o diabetes com essa volúpia por doces, mas eu não acredito nisso, eu imagino que esta doença é uma punição pela gula glicêmica.

E, entre todas as comidas que me fanatizaram, a única que não pertence à minha infância é o camarão: conheci-o muito tarde, no auge da maturidade, mas me apaixonei perdidamente por ele.

E me sinto como um infiel à minha infância quando insulto a memória dela comendo a rodo todos os tipos de camarão.

Sinto pena de minha madrasta por não ter podido lidar com o camarão na cozinha. Mas eram tantas as comidas gostosas que ela nos servia, que a absolvo dessa falha.

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