terça-feira, 6 de maio de 2008



06 de maio de 2008
N° 15593 - Moacyr Scliar


Crime, culpa, castigo

Os fãs de Woody Allen vão estranhar O Sonho de Cassandra. Diferente de outras obras do cineasta, não é uma comédia, é uma tragédia. E dividiu a crítica. Alguns a consideram uma obra menor. Mesmo menor, Woody Allen é grande. Vale a pena ver.

A trama é muito simples: dois irmãos Terry e Ian (Colin Farrell e Ewan McGregor, ótimos), estão precisando de dinheiro, um por dívidas de jogo, o outro para um ambicioso investimento.

Recorrem a um tio rico que concorda em emprestar a grana, com uma condição: os rapazes têm de liquidar um homem que ameaça divulgar um segredo capaz de levar o ricaço à prisão por muito tempo. Os irmãos hesitam, mas acabam aceitando, e, depois de algumas trapalhadas - afinal, são amadores - conseguem cumprir a missão.

Mas então Terry começa a sentir remorsos, fica gravemente deprimido e por fim resolve se entregar à polícia. Ian consulta o tio e decide: matará o irmão, no barco do qual ambos são donos, o Sonho de Cassandra. O final, que não vou contar para não estragar a surpresa, é sombrio, como aliás o filme todo.

É impossível não pensar em Crime e Castigo, de Dostoievsky. Nesta novela, Raskolnikov, um jovem estudante, planeja resolver seus problemas financeiros matando Alyona Ivanovna, uma rica velha que vive da penhora e da usura, vista por ele como um ser insignificante e descartável.

Mata-a, mas, como Terry, não pode escapar daquilo que é parte integrante da cultura judaico-cristã: a culpa. Raskolnikov, como Ian, tenta racionalizar o crime, lembrando que violência é parte da vida e que seu ídolo Napoleão não se havia deixado intimidar pelo sacrifício de pessoas "comuns".

Neste sentido é interessante comparar os dois irmãos, Ian, loiro, risonho (ao contrário de Terry, moreno e ensimesmado), defende a idéia de que o passado é o passado, o que conta é o futuro, que, com dinheiro, será muito melhor.

Ouvindo-o falar, a gente compreende o atual interesse em relação a drogas capazes de suprimir a memória. Seriam benéficas, por exemplo, para mulheres que foram violentadas e que, por alguma razão, se sentem culpadas.

Mas num artigo no Village Voice Erik Baard cogita de outra possibilidade. Imaginem, diz, um soldado americano em meio a uma das tantas guerras que seu país moveu. Está diante de uma casa, na qual refugiaram-se os inimigos, usando pessoas da população civil como escudos humanos.

Atacar ou não atacar? "Todos os valores que ele aprendeu na infância", escreve Baard, "dizem-lhe que recue, que encontre outro meio de chegar ao inimigo." E aí surge a alternativa que, por enquanto, é imaginária: "Ou ele pode completar a tarefa, tomando depois pílulas que o imunizarão contra uma culpa esmagadora".

Resultado: "Ele começa a atirar". Mas Ian, mesmo tomando remédios, não consegue esquecer, e por isso ele é tão incômodo quanto Cassandra, uma princesa de Tróia por quem Apolo se apaixonou e a quem ensinou os segredos da profecia.

Quando exigiu o pagamento em favores sexuais, Cassandra recusou; Apolo lançou-lhe uma maldição: ninguém jamais acreditaria nas suas profecias ou previsões. Cassandra tentava advertir Tróia das desgraças que viriam, mas era considerada louca. Como Terry.

É impressionante a coincidência desse lançamento com o caso Isabella. Nos dois casos, trata-se de assumir a culpa. Que é um problema antigo da condição humana, mas que tem resposta.

Se a culpa é neurótica, imaginária, a solução é terapia. Mas se a culpa corresponde a uma causa real, se é responsabilidade (a palavra vem de responsa, e de fato responsável é quem responde por seus atos), o jeito é encarar.

No filme, a gente sabe o que acontece. Vamos ver o que acontecerá no caso que mobiliza o Brasil.

Nesta terça Lya Luft lança, na Cultura, O Silêncio dos Amantes. Não percam.

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