sábado, 3 de maio de 2008



03 de maio de 2008
N° 15590 - Cláudia Laitano


Da amizade

Um dos textos mais delicados já escritos sobre a amizade foi publicado no finzinho do século 16 por um autor que, ainda hoje, qualquer um lê com imenso gosto e interesse.

No ensaio Da Amizade, Montaigne (1533 - 1592) descreve sua relação com o filósofo e escritor francês La Boétie (1530 - 1563) ao mesmo tempo em que reflete sobre um sentimento que, segundo ele, supera em duração e profundidade o amor. A afeição pelo sexo oposto, segundo ele, "é mais ativa, mais aguda, mais áspera; é uma chama temerária e volúvel".

Já o valor da amizade "estende-se a todo o nosso ser: é geral e igual; temperada e serena; soberanamente suave e delicada, nada tendo de áspero nem de excessivo". Um trecho desse ensaio de Montaigne, transposto para o contexto amoroso, é citado por Chico na canção Porque Era Ela, Porque Era Eu.

Tentando explicar por que sua amizade com La Boétie havia sido tão intensa e lhe fazia tanta falta (a convivência estreita dos dois foi de apenas quatro anos, até a morte precoce de La Boétie, aos 33 anos), Montaigne explica da forma mais simples e profunda possível: "Porque era ele, porque era eu".

Se vivesse nos tempos de hoje e ainda por cima trabalhasse (na remota hipótese de poder conciliar a rotina de escrever seus ensaios com a obrigação de trabalhar), Montaigne talvez dedicasse algumas linhas ao ambiente de trabalho e ao tipo de relações de amizade que ali se estabelecem.

Relações que surgem não por escolha, mas por circunstâncias mais ou menos aleatórias, e que ainda assim ocupam na nossa vida um espaço central - quem consegue dedicar à família ou aos amigos por eleição oito horas diárias de convívio além de incontáveis almoços e cafezinhos?

Conhecemos profundamente um colega próximo de trabalho. Sabemos sua opinião sobre quase tudo, antecipamos suas reações, reconhecemos dias bons e dias ruins, sem, muitas vezes, chegarmos ao nível de intimidade que nos faz freqüentar sua casa ou trocarmos as confidências, que, em geral, guardamos para os amigos de eleição.

Por essa intimidade que nem sempre se completa, os colegas de trabalho entram e saem de nossa vida sem muita solenidade, como turistas que voltam para casa depois de um longo período de estada em um país estrangeiro.

Às vezes, a convivência se encerra nela mesma, e o ex-colega entra naquele rol indistinto de pessoas que passaram pela nossa vida: colegas de escola, amigos de amigos, ex-amantes.

Às vezes, a camaradagem no ambiente de trabalho, mesmo quando não chega à mesa de bar ou à festa de aniversário, impõe uma marca que ultrapassa a própria convivência. Como se chama esse tipo de amizade? Cadê Montaigne para falar sobre ela?

Convivi com o jornalista Tuio Becker (1943 - 2008) durante 10 anos, os primeiros da minha vida profissional. Ao longo de tantos almoços, cafezinhos e dias aparentemente iguais de rotina de trabalho, fui aprendendo com o Tuio não só as lições básicas, e indispensáveis, de cinema, teatro, música e dança, mas a essência do próprio jornalismo cultural - que é respeitar (e procurar conhecer) a tradição sem nunca perder o entusiasmo pela novidade.

Tuio distribuiu generosamente sua cultura e seu bom humor até o último dia de trabalho no jornal, há sete anos, quando se aposentou.

Formou e informou todos os que tiveram o privilégio de conviver com ele ao longo de mais de 30 anos de jornalismo. Por que ele fez tanta diferença na minha vida? Porque era ele, porque era eu.

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