terça-feira, 1 de junho de 2021


01 DE JUNHO DE 2021
NÍLSON SOUZA

Imorrível

Toda vez que o saudoso amigo Moacyr Scliar entrava na nossa sala de trabalho, na Redação de Zero Hora, um de nós alertava em voz alta:

- Chegou o imortal!

Ele, invariavelmente, respondia: - Sou imortal, mas não imorrível.

Em seguida, esclarecia que o neologismo não era de sua lavra, mas sim uma criação do pernambucano Evanildo Bechara logo depois de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, no ano 2000. Bechara inspirou-se no ex-ministro Antônio Rogério Magri, que anos antes provocara um debate nacional digno de redes sociais, se elas existissem naqueles tempos colloridos, ao dizer que "o Fundo de Garantia para o trabalhador sempre foi imexível".

Na ocasião, a palavra estranha suscitou debates acalorados entre os intelectuais, pois não estava dicionarizada. Mas acabou entrando para o vocabulário político nacional. E Bechara, filólogo respeitado, até saiu em defesa do ministro, lembrando que "a língua é o que os falantes fazem dela".

Pois agora o termo imorrível também volta à pauta da política nacional, juntamente com outros neologismos de péssimo gosto que dizem muito sobre quem os veste. Tanto um quanto os outros, pela evidente inconsistência, indicam exatamente o contrário do que apregoam. Como ensinou Baden Powell, o homem que diz sou não é. A língua também revela a capacidade mental do falante.

Bravatas à parte, seria horrível ser imorrível, como bem demonstra o emblemático romance do escritor José Saramago, As Intermitências da Morte. Em determinado país fictício, a Inominável resolve fazer greve. Ninguém mais morre. No princípio, euforia geral. Em pouco tempo, porém, as pessoas começam a perceber que os enfermos não melhoram nem seus sofrimentos e dores diminuem. Só não cessam. Vira uma agonia insuportável. Vale a leitura.

Por enquanto, por mais que a ciência tenha avançado, nenhum de nós está livre da extinção física. Somos todos morríveis, essa é que é a verdade. Até por isso, deveríamos aproveitar a nossa breve passagem pelo planeta para sermos mais humanitários, compreensivos e solidários uns com os outros. Quem se exalta como imorrível, principalmente no contexto de uma calamidade como a atual pandemia, é no mínimo insensível.

NÍLSON SOUZA

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