domingo, 21 de fevereiro de 2021


20 DE FEVEREIRO DE 2021
J.J.CAMARGO

E HAJA DISPONIBILIDADE

Mario Rigatto e Adib Jatene eram tipos humanos especiais. Além de grandes mestres, eram pensadores sábios e generosos, com direito adquirido de serem implacáveis, vez por outra. Numa conferência na Academia Nacional de Medicina, falando sobre formação médica, evoquei-os para apontar dois pré-requisitos essenciais à esta maravilhosa profissão. Rigatto assegurava, com toda a convicção, que "ninguém consegue ser um bom médico sem antes ser uma pessoa boa". Já Adib valorizava muito a disponibilidade: "Sempre repito aos meus filho, que o indisponível nunca será um bom médico!". Eu não saberia dizer qual desses atributos é o mais importante, mas tenho certeza de que não podemos prescindir de nenhum deles.

Numa noite do último ano bom (naquele tempo que a gente não tinha medo, lembram?), testei, involuntariamente, a disponibilidade, esta virtude pouco aclamada, mas que considero essencial em qualquer atividade, e muito especialmente na medicina, a ponto de jamais encaminhar pacientes para colegas que sei que são competentes, mas que nunca estavam no lugar quando precisei deles.

Mas voltando à história que motivou esta crônica: foi uma ligação fora de hora, com uma voz talvez reconhecível, se houvesse mais tempo para investigar. Surpreendido com o inesperado da chamada, sem procedência identificada, soltei um "alô".

- Dr. Camargo, o Sr. está bem ou meio gripado? Sua voz parece meio rouca! (Veja que grande potencial clínico para a telemedicina, visto que faz diagnóstico só com um alô.)

- Estou bem, mas acontece que recém acordei, estou em Berlim, e aqui são 3h da madrugada!

- Que bom que o Sr. está bem, porque eu tenho uma pergunta bem rápida: um cirurgião que trabalha com o Sr. e que sempre esqueço o nome me pediu uma tomografia para a minha revisão daqui a seis meses. O Sr. acha que essa tomografia deve ser com ou sem contraste?

Com a vontade de voltar a dormir maior do que a irritação de ter sido involuntariamente acordado por uma bobagem, fiz a pergunta indispensável:

- O Sr. tem algum problema nos rins?

- Não. Deusulivre!

- Então, é melhor fazer com contraste.

- Obrigado, Dr. Estimo melhoras!

- Obrigado para você também.

E foi um alívio voltar a dormir!

Talvez o grande problema da disponibilidade seja a definição do limite. Naquele inverno, entrei no elevador com uma velhinha, simpática e sorridente.

- Nem acredito lhe encontrar no elevador, não perco uma das suas crônicas no sábado!

- Que bom, muito obrigado pelo carinho!

- Posso lhe pedir uma coisinha bem rápida?

- Sim, pois não.

- Tem luz no seu celular?

- Sim, claro!

- Será que o Sr. podia dar uma olhadinha na minha garganta, que anda me incomodando?

Antes que eu pudesse responder, a bocarra já estava escancarada. Sem alternativa, dei uma espiada rápida. Quando a porta do elevador se abriu, não senti nenhuma vontade de explicar àquele povo que esperava para embarcar o que a lanterna do meu iPhone fazia esparramada na amígdala esquerda daquela vozinha que não perde uma crônica minha no sábado. E saí caminhando pelo corredor, encantado com a minha própria disponibilidade.

Claro que foi uma consulta bizarra, mas como estabelecer o tal limite se a amígdala da vozinha não tem hora para incomodar?

J.J.CAMARGO

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