sábado, 13 de fevereiro de 2021


13 DE FEVEREIRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

A difícil vida fora dos livros

Semana passada aconteceu mais uma história que seria inverossímil nos livros, mas que na vida real pode acontecer sem maiores espantos. A vida real, como se sabe, não tem compromisso algum com a razão.

A escritora e advogada Saíle Bárbara Barreto, que até já apareceu aqui na coluna com a página Diário de Uma Advogada Estressada, caiu para trás com a notificação que recebeu. Um juiz de Santa Catarina entendeu que um dos personagens do novo livro dela, Causos da Comarca de São Barnabé, era... ele. O Ministério Público tomou as dores do juiz e ofereceu a representação. Agora, dois processos correm em segredo de Justiça, pleiteando uma indenização incompatível com os rendimentos da Saíle. Ela também não pode mais publicar os capítulos do livro em suas redes sociais para seus mais de cem mil seguidores sob pena de uma multa diária.

A que ponto chegamos.

É fato que escritores se inspiram no mundo para criar seus personagens. Difícil a realidade não entrar na ficção, ainda mais quando ela parece pronta para ser escrita em forma de saga. A Saíle, que faz em seu livro uma crítica bem-humorada ao sistema judiciário, alega que sua comarca é ficcional, tal e qual o juiz do livro - cujo nome não pode ser citado por decisão do MP. O juiz da vida real não tem provas de que foi o muso inspirador do personagem, mas o que importa é que está cheio de convicção. E isso diz mais sobre a atuação dele que sobre o livro da Saíle - disponível em formato digital na Amazon, ao menos até o fechamento dessa edição.

Um dos escritores que divulgou o incrível causo da Comarca de São Barnabé foi o paulista Ricardo Lísias, que já passou por situação parecida. Em 2017, quando o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha ainda aparecia no noticiário - mas já em pleno ocaso, guardadinho em sua cela -, Lísias lançou o romance Diário da Cadeia e assinou como Eduardo Cunha (pseudônimo). Assim mesmo, com a palavra pseudônimo entre parênteses, estampada na capa do livro.

A Justiça cobrou uma indenização por dano moral a Cunha (caiu um lenço: moral?) e determinou que a edição toda fosse apreendida. Um dos trechos da sentença: "A própria capa do livro leva-nos a pensar que o mesmo foi escrito pelo autor da ação, uma vez que é ele quem se encontra recluso, não sendo crível que o pseudônimo também se encontrasse recluso a justificar o título escolhido para o livro."

Se alguém entendeu alguma coisa, cartas para este endereço.

Mais dramático foi o que aconteceu ao escritor João Paulo Cuenca, que parafraseou uma frase de Jean Meslier, autor do século 18, para criticar o governo atual. A frase, que não vou reproduzir para não me incomodar, misturava política e religião. Em ação orquestrada, pastores da Igreja Universal entraram com ações simultâneas contra Cuenca. Eram 134 processos em novembro de 2020, todos com o mesmo texto, em interiores como Planaltina e capitais como São Paulo. A conta do escritor chegou a ser banida do Twitter por decisão de um magistrado.

Uma das únicas decisões favoráveis a Cuenca veio da comarca de Plácido de Castro, no Acre. Após criticar o mau gosto da frase, e era de mau gosto mesmo, a juíza determinou o encerramento da causa por entender que o pastor que a movia não tinha nada a ver com o peixe, caracterizando um "abuso do direito de ação". A juíza ressaltou a dificuldade de Cuenca em se defender de vários processos em estados diferentes, "o que lhe trará enormes dispêndios financeiros, ainda mais em sede de juizados especiais, cuja ausência do reclamado às audiências importa em revelia". E não é?

É como disse Albert Camus em sua frase clássica: se o homem falhar em conciliar liberdade e justiça, então falha em tudo. Pode me chamar de Velhinha de Taubaté - que, aliás, morreu em 2005, na frente da televisão, provavelmente pelo choque com alguma notícia. Mas eu ainda acredito que, lá no fim, a gente acerta.

E se não acertar, é porque ainda não chegou ao fim.

CLAUDIA TAJES

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