06 DE FEVEREIRO DE 2021
ELIANE MARQUES
O FASCÍNIODO EU
Bibiana e Belonísia retiram de debaixo da cama destinada ao sono da avó uma maleta. Da maleta retiram uma faca que as fascina. Ambas se veem no fio da faca como se num espelho. Ambas levam o metal à boca, pois enorme a vontade do seu gosto. A avó as surpreende e, ameaçando cortar suas línguas, pergunta o que faziam. Belonísia, doravante B1, estava sem língua; e Bibiana, B2, tinha um talho na língua.
Antes disso, as irmãs disputavam tudo. Após o "acidente", um sentimento de união as tomou. Uma teria que falar pela outra, uma seria a voz da outra. "Foi assim que me tornei parte de Belonísia, da mesma forma que ela se tornou parte de mim"; "Seríamos iguais", diz Bibiana. O corpo despedaçado de uma encontra, agora, unidade na imagem do corpo da outra. Porém, a unidade que Belonísia "olha" na imagem de Bibiana é sua própria imagem antecipada, ou seja, o que ela projeta para o seu futuro como "gente" e vice-versa. O ditado, "a grama do vizinho é sempre mais verde", cabe aqui.
O que ocorre com B1 e B2 na primeira parte do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (Todavia), se apresenta logo após a fascinação, não com a faca da avó - nossas impressões são enganosas -, mas com as imagens de uma e de outra refletidas no fio da faca.
Então, isso que Lacan nominou de "estádio do espelho", fundante do "eu", se assenta sobre, de um lado, a relação entre o que podemos nominar de vivências desconectadas e despedaçadas, num certo momento e, de outro lado, numa unidade com a qual ela se confunde e se emparelha. Esse despedaço-emparelhamento virtual é aquilo em que B1 se conhece como unidade estranha a si mesma, ou seja, se conhece como B2. No Livro 2, Lacan diz que a fascinação é essencial para o fenômeno da constituição do "eu". É na qualidade de fascinada que a diversidade descoordenada, incoerente, da despedaçagem primitiva adquire sua unidade, pontua ele.
Isso gera uma situação de impasse. Entre B1 e B2, pelo menos até a primeira parte do Torto Arado, a união perfeita se rompe quando surge o primo Severo, para o qual se volta o desejo de uma e de outra, já que uma é modelo para a outra. Aí aparece a dialética do ciúme, pois um "eu", pendente da unidade de outro "eu", é incompatível com ele no campo do desejo.
Um objeto temido, desejado, como primo Severo, não poderá pertencer ao mesmo tempo à B1 e à B2. Ou será de uma ou será de outra. E quando for de uma, a outra será vista como sua pertença.
Essa rivalidade constitutiva exige um reconhecimento a fim de que a comunidade do "eu" e do outro no desejo do objeto não se destruam. Tal reconhecimento se dá numa espécie de acordo, que se pode chamar de sistema simbólico. O sistema simbólico teve que operar em B1 e B2 para que cada uma se tornasse Bibiana e Belonísia.
Tal processo ocorre dia a dia conosco, e, quando a dimensão simbólica não intervém, aquela que sou "eu" no reflexo da faca, que é apenas o "olho", torna-se minha inimiga. Com isso, cumpro a promessa que fiz a vocês no último artigo. Mas deixo a pergunta: Por que uma faca que cortou e arrancou línguas se o olho, como espelho, seria suficiente?
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