sábado, 13 de fevereiro de 2021


13 DE FEVEREIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

O perdão para ser feliz

O brasileiro espera. Trata-se de uma atividade nacional. Ou, no caso, inatividade. Mais ainda: trata-se de um sentimento. O brasileiro sente que precisa esperar.

Nos anos 1960, Chico Buarque lançou Pedro Pedreiro, contando sobre um personagem que passava a vida esperando o trem, esperando o sol, esperando o aumento para o mês que vem. Não é a melhor música do Chico, mas ele acertou em cheio: o homem comum do Brasil, o que ele faz é esperar.

Ele espera por dias melhores, tudo bem, todo mundo espera por dias melhores, mesmo que os dias do presente sejam ótimos. Mas não é só isso. O brasileiro tem necessidade íntima de esperar.

Agora, nos primeiros dias da vacinação contra a covid, em Porto Alegre, as pessoas correram de madrugada para os postos de saúde. Ouvi na Gaúcha que os filhos de alguns idosos passaram a noite na fila, em frente ao posto fechado. Aí, de manhã, o lugar abria e as pessoas eram vacinadas com tranquilidade. Em pouco tempo, a fila se desfazia e quem chegasse saía em cinco minutos.

Por que a ânsia de ir para a fila e esperar a noite toda ao relento?

Porque dá ao homem a sensação de merecimento. Ele fez um sacrifício para ganhar aquela benesse, ele não é um privilegiado.

Surge aí outra palavra-chave do inconsciente coletivo brasileiro: privilégio.

Há seis anos, a Seleção Brasileira realizou um amistoso contra os Estados Unidos no estádio dos Patriots, na periferia de Boston. O Zé Alberto Andrade cobria o jogo pela Gaúcha, e me juntei a ele para escrever para a Zero Hora.

Esse estádio dos Patriots não é só dos Patriots. É também do time de futebol da região, o Revolution. E tudo, estádio e clubes, tudo pertence a um bilionário local chamado Robert Kraft, que é de Brookline, onde morei, e estudou na mesma escola (pública) em que meu filho estudou. Outro aluno ilustre dessa escola (pública, pública!) foi John Kennedy. Para você avaliar a qualidade da educação (PÚBLICA) naquele naco dos Estados Unidos.

Mas estou tergiversando. Voltemos ao estádio, que é bastante imponente. Para jogos de football, reserva quase 70 mil lugares; para os de futebol, quase 90 mil. Todos os jogos do Patriots alcançam lotação máxima. Todos.

No dia do treino da Seleção, o Patriots trabalhou antes do Brasil. Nós estávamos perto do vestiário, jornalistas e jogadores brasileiros, e aqueles caras vieram de lá, dentro daquelas armaduras deles. Quando chegaram perto, ficamos boquiabertos. Eles são GIGANTES! Não só altos, mas grandes como ursos. Alguns, gordos. Homens de 130 quilos de peso e dois metros de altura. Os zagueiros do Brasil pareciam menininhos perto deles. O Neymar observava-os, mudo e lívido. Provavelmente imaginava o que seria dividir uma bola com um monstrengo daqueles.

Bem, mas o que ia contar é que os repórteres não teriam acesso ao gramado durante o jogo, e o Zé Alberto resolveu fazer algo a respeito: escreveu um longo e-mail em inglês pedindo liberdade para trabalhar, expôs suas boas razões, fez ponderações. Mostrou-me o texto. Estava bem escrito, bem fundamentado.

- Mas olha, Zé - disse para ele -, nem precisava tanto. Bastava perguntar se pode. Se puder, eles deixam. Se não puder, não deixam, e não tem mais conversa.

Não deu, e não teve mais conversa. Duvido mesmo que tenham lido o e-mail. Porque o americano é duro e reto nisso: se você reivindica algo e tem direito a tal, ele responde "sure", claro, e é seu; se não tem direito, ele sorri e diz "sorry", desculpe, e não adianta insistir. Não haverá privilégio. Nem prejuízo.

O brasileiro, ao contrário, sabe que, para obter inclusive o que lhe é de direito, terá de contar com privilégios. Forças ocultas estão sempre à espreita para lhe tirar o que tem ou o que deveria ter. Então, o brasileiro se explica e se esforça para provar que não é à toa que ganhou um benefício qualquer. Donde, a conformação com a longa espera, e mais até do que conformação: o apreço. O regozijo. Pois o sacrifício da espera justifica o bem adquirido e redime o brasileiro da culpa de ter conseguido aquilo que outros queriam. Então, o brasileiro não se importa de esperar. Ele aceita a espera, sublima-se nela. A espera lhe dá o perdão para ser feliz.

DAVID COIMBRA

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