segunda-feira, 6 de julho de 2020



06 DE JULHO DE 2020
DAVID COIMBRA


Os escravos do vírus


São muitos os seriados que PRECISO assistir. Ressalto o "preciso" porque se trata, realmente, de uma necessidade social. É um assunto recorrente das pessoas. No caso de Game of Thrones, por exemplo, fui tratado como pária por não ter acompanhado a série. Um dia, falei para o Magro Lima, da Atlântida, que não via filmes com dragões, e ele me lançou, através de dois olhos gelados, um raio de desprezo que me petrificou o coração. Senti-me diminuído, mas ainda assim fui fiel aos meus princípios: não vi Game of Thrones.

Não entendo o que aconteceu com as pessoas. No tempo da Jeanne é um Gênio e dos Perdidos no Espaço não era assim.

O Peninha, agora, está instando para que eu veja o seriado do João de Deus. Verei. Mas, antes, tenho de terminar os dois que comecei: The Crown e Spartacus.

Não poderia haver duas histórias mais diferentes. The Crown, acerca da rainha Elizabeth II, faz uma reconstituição histórica espantosamente minuciosa. Você entra na Inglaterra dos anos 30, 40 e 50, é uma máquina do tempo. Que trabalho duro e que gastos pesados devem ter sido exigidos para se fazer uma produção dessas.

Já Spartacus é mais ficção do que história real. Os produtores da série deram aos espectadores o que os espectadores mais apreciam: sexo e sangue. Estou gostando de assistir, mas não por sexo e sangue, e sim porque Espártaco foi um dos meus quatro ídolos da juventude. Os outros eram Emiliano Zapata, Albert Camus e Roberto Rivellino.

Espártaco foi, talvez, o primeiro herói libertário da história da humanidade. Ele era um trácio forte, inteligente e insubmisso. Quando a Trácia foi conquistada pelos romanos, os vencedores o alistaram à força no exército. Espártaco se rebelou e fugiu. Capturado novamente, mandaram-no para uma escola de gladiadores em Cápua. Ou seja: seria obrigado a lutar até a morte com outros homens que, como ele, tinham sido reduzidos à escravidão. Pois Espártaco convenceu os gladiadores a se sublevarem e, uma noite, eles se armaram de facas de cozinha comuns, com elas bateram a guarnição da escola e fugiram.

Soldados foram enviados para contê-los, mas os gladiadores, bem-treinados na luta corporal, bateram neles e lhes tomaram as armas.

A notícia da revolta se espalhou pelo império, e outros escravos começaram a fugir e a se reunir ao grupo de Espártaco. Logo, havia 40 mil deles desafiando o poder de Roma. Uma legião atrás da outra era mandada para combater os escravos, e, uma atrás da outra, eles as derrotavam, até que o famoso general Crasso conseguiu contê-los. O corpo de Espártaco, porém, nunca foi encontrado, e ele se transformou em lenda de liberdade.

Eu era adolescente quando li essa história pela primeira vez, no ótimo romance de Howard Fast, Espártaco. Esse livro deu origem ao filme de Stanley Kubrick, em que Kirk Douglas é Espártaco e sir Laurence Olivier é Crasso. A cena final desse filme é de arrepiar. Os conquistadores querem identificar Espártaco entre os prisioneiros, a fim usá-lo como exemplo. Crasso e seus legionários se aproximam do grupo de escravos derrotados e anunciam que, se eles apontarem quem é Espártaco, as vidas de todos serão poupadas. Se não apontarem, serão crucificados. Kirk Douglas-Espártaco faz um movimento para se levantar e revelar sua identidade, mas, antes que possa falar, um escravo grita:

"Eu sou Espártaco! E outro, ao lado, repete: "Eu sou Espártaco!"

E atrás e na frente e em toda parte os escravos se erguem e gritam:

"Eu sou Espártaco! Eu sou Espártaco! Eu sou Espártaco!"

Laurence Olivier-Crasso lança um olhar entre surpreso e admirado para aqueles homens de espírito irredutível, enquanto Kirk Douglas-Espártaco deixa uma lágrima de orgulho rolar-lhe pela face abaixo.

Como não se empolgar com uma cena dessas?

Há dois anos, na Copa da Rússia, vi-me diante da grande estátua em homenagem a Espártaco que está plantada no pátio do estádio do Spartak, de Moscou. Olhei para a imagem do herói e gritei em português, para espanto dos russos no entorno:

"Eu sou Espártaco!"

Hoje, nos tornamos escravos do corona. Não de um poderoso império armado, mas de um ínfimo, microscópico vírus. A luta milenar do ser humano para ser dono de seu próprio destino nada significa diante deste inimigo invisível e silencioso. Vinte e um séculos depois, somos todos Espártaco: prisioneiros, sonhadores, iludidos. Ah, a liberdade não passa, mesmo, de uma ilusão.

DAVID COIMBRA

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