06 de janeiro de 2013 | N° 17304
ARTIGOS - Luiz Antônio Araujo*
O xadrez da língua
Nosso calendário, estabelecido
por uma bula papal no século 16 e graças ao qual você pode ler no alto desta
página que estamos no ano de 2013, é fundado sobre uma efeméride. Não se sabe,
claro, se o marco inicial da era cristã coincide com o sucesso histórico que
invoca, o nascimento de Jesus. Estudiosos dizem que, se forem corretas as
referências bíblicas, o carpinteiro da Galileia teria nascido de quatro a sete
anos antes.
O fato é que o tempo é a base de
toda economia, inclusive a simbólica e íntima, e o transcurso de um ano equivale
ao intervalo aproximado que a Terra leva para dar uma volta completa ao redor
do Sol. Assim, entra ano, sai ano, e cada um que se dedique a escolher datas
cheias para celebrar. A quem interessar possa, não custa lembrar que 2013 marca
o centenário da morte de um dos pensadores mais importantes da era moderna:
Ferdinand de Saussure (1857 – 1913).
Normalmente chamado de pai da
Linguística, o suíço Saussure (pronuncia-se Sôcírr) costuma ser comparado a
Cristo e Sócrates por não ter deixado obra escrita. Há nisso uma imprecisão: em
vida, ele publicou um opúsculo sobre o sistema de vogais nas línguas
indo-europeias e numerosos artigos. Quando morreu, seus alunos vasculharam
gavetas em busca dos apontamentos utilizados em três cursos magistrais sobre linguística
ministrados entre 1907 e 1911 na Universidade de Genebra.
O que puderam localizar foi
decepcionante: as poucas notas deixadas pelo mestre não refletiam o conteúdo
das aulas brilhantes. Sua obra mais famosa, Curso de Linguística Geral, foi
composta por três de seus discípulos a partir de anotações feitas por
frequentadores dos cursos. Já no final do século passado, outros originais
foram encontrados na Biblioteca Universitária de Genebra e publicados.
Saussure sustentou que língua e
fala não eram a mesma coisa, e que os linguistas deveriam se concentrar no
estudo da primeira. A língua é um sistema de signos, unidades que compara a
folhas de papel nas quais o pensamento é a frente, e o som, o verso: “Não se
pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro”.
O signo não depende da vontade de
quem fala nem das características daquilo que nomeia: se em vários idiomas a
palavra equivalente a “mãe” contém o som “m”, isso não tem mais relevância do
que a aparência radicalmente distinta da palavra “felicidade” nesses mesmos
idiomas.
A língua é uma “estrutura”, um
conjunto de elementos que se inter-relacionam, se limitam e se completam, como
os ossos do corpo humano. Saussure compara o funcionamento da língua ao xadrez,
no qual as características e o movimento de cada peça só podem ser entendidos
no contexto do jogo e se pode ter a mesma compreensão de uma partida
independentemente de tê-la jogado desde o início ou começado a assisti-la perto
do final. Finalmente, a língua nasce e adquire sentido em meio à coletividade
humana.
Costuma-se dizer que Saussure
influenciou o conjunto das ciências humanas no século 20, mas ele fez mais do
que isso.
Sem seu trabalho, a própria
possibilidade de que o homem pudesse ser o objeto de um saber científico teria
tido um destino diferente. Ele forneceu o horizonte para obras tão díspares
quanto as do antropólogo Claude Lévi-Strauss, do crítico literário Tzvetan
Todorov, do psicanalista Jacques Lacan, dos semiólogos Roland Barthes e Umberto
Eco, dos filósofos Michel Foucault e Jacques Derrida, do historiador Michel de
Certeau, sem falar nos que abraçaram a Linguística, de Émile Benveniste a
Zellig Harris e Noam Chomsky.
Docente obscuro numa metrópole
europeia de segunda linha, mudou a compreensão do mundo sobre temas como
gênero, raça, religião, diversidade cultural, Europa, Oriente e Ocidente. Cem
anos depois, sua morte ainda nos pega de surpresa.
*JORNALISTA
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