04 de janeiro de 2013 | N° 17302
CINTIA MOSCOVICH
Tradição
agora
Sabe a história daquele americano endinheirado que, no
início do século passado, sob o sol da Califórnia, se dispôs a produzir o
melhor vinho do mundo?
De tanto suplicar e acenar com maços de dólares, o americano
convenceu o enólogo do Château Lafite-Rothschild a ajudá-lo. O enólogo, um
francês cético e blasé, delimitou um terreno em Santa Barbara, cujo solo foi
analisado por uma tropa de especialistas: corrigiram a acidez e enriqueceram a
terra com húmus de minhocários vindos de navio em caixas refrigeradas.
Importaram mudas de antigas videiras das mais célebres castas da Europa.
Ergueram adegas com controle de umidade, temperatura e
luminosidade. Instalaram ventiladores, estufas, irrigadores. Trouxeram barris
de madeiras nobres, destiladores, filtros, termômetros. Era impossível, do
ponto de vista técnico, não chegar à perfeição.
Mas vinho também é arte, e foram anos de tentativas. Quando
o americano finalmente conseguiu um vinho excepcional, o desapontamento: as
vendas foram tão medíocres quanto o estado de sua conta bancária. Sem entender
a lógica do negócio, baixou o preço, até que uma garrafa de vinho valesse o
mesmo que uma de suco de uva. O enólogo tentou acalmar o americano:
– Vinhos bons podem ser feitos em menos de 10 anos. Vinhos
respeitados demandam uns 200 anos de história. Tenha paciência.
Pois essa fabulazinha nos fala da força de algo a que, aqui
nestes costados, demos as costas: a história das coisas. Vivemos em época de
superficialidades, na qual todos têm conhecimento de ouvir dizer e direito a
palpites – tudo com a profundidade de poças d’água. Vivendo na superfície
frágil dos acontecimentos, não nos importa essa permanência no tempo, a
substância preciosa das coisas com passado. Instituições antigas ou pessoas
mais velhas são ultrapassadas e nunca ganham o respeito ou a deferência
merecidas. Não temos interesse em fundar a tradição.
Quando, na semana passada, foi ao ar Doce de Mãe, especial
realizado pela Casa de Cinema de Porto Alegre, tive a nítida impressão de
solidez. Com direção de Jorge Furtado e Ana Luíza Azevedo, roteiro deles e mais
Miguel da Costa Franco, com a impressionante Fernanda Montenegro, participação
de Mirna Spritzer e Patsy Cecato – entre outros talentos –, o telefilme marca
época.
Sem querer ser bairrista, e já sendo, mas nosso Estado é o
único, fora do eixo Rio-São Paulo, que tem uma produção audiovisual constante e
com qualidade – e isso graças, em grande parte, aos 26 anos da Casa de Cinema
(que já teve Carlos Gerbase e ainda conta com Giba Assis Brasil e Nora Goulart)
e aos 12 anos do Projeto Histórias Curtas da RBS TV (tocado por Alice Urbim e
Gilberto Perin).
Essa constatação, por bairrista que seja, representa um
alento numa terra que clama, muito, por civilidade. É como se essas duas
instituições fossem, para nós, o que o enólogo francês foi para o americano: o
estatuto de uma tradição. E o melhor de tudo é que nem precisamos de 200 anos.
A melhor safra é agora. Feliz 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário