03
de dezembro de 2012 | N° 17272
CELSO
GUTFREIND
A praga das nádegas
Ao
Verissimo, inteiro.
Tudo
começou na academia. A Lurdinha olhou para a esteira ao lado e viu umas nádegas
fora de um corpo sem nome. Pensou no Paulo. Enlouqueceu. Quis para ela. E eram
duas.
Eram,
de fato, nádegas perfeitas. Nas metades e no todo. No risco divisório, também. Provavelmente,
na textura. Cada gomo tinha a exatidão de volume e peso. Parados, iam ao auge. Em
movimento, ficavam indescritíveis. Juntos, alcançavam aquela harmonia só vista
nos momentos mais bem-sucedidos de uma arte. Renascentista. O rosto da Mona
Lisa. O olhar da Mona Lisa. Nas nádegas.
A
Lurdinha recolheu o olhar, mas não a inveja. Pesava nas pernas quando voltou
para casa. Na primeira noite, sonhou que o seu corpo estava despedaçado. Braço
aqui, perna ali, pescoço acolá. Um quadro de Dali, piorado. Ela ia juntando as
partes. Não sentia tristeza, mas esperança. O Paulo pensou em sacudi-la, mas
ela foi se acalmando. Lurdinha preparava a beleza da vigília. E valeu a pena: perto
do fim, tudo voltava a seu lugar, menos as nádegas originais, substituídas pelas
do corpo sem nome.
Difícil
foi deixar o sonho. De volta à dura realidade, ela tomou coragem. Na academia,
ergueu os olhos até os ouvidos da proprietária da “duríssima” e pediu a receita.
Receitas costumam ser fáceis, caras, e aquela era. Uma pitada de aminoácidos,
muita proteína e agachamentos. Várias vezes ao dia, durante muito tempo. Ela
anotou tim-tim por tim-tim e começou a cumprir, rigorosamente: – Obrigada,
Vanusa!
Lurdinha
agora só falava nisso. E punha as mãos na massa. Quer dizer, nas nádegas. Seguia
a prescrição à risca e atualizava o Paulo, com os últimos resultados. Ele
acompanhava, num silêncio constrangido, que interrompeu só uma vez:
– Saudades
de ti.
A
Lurdinha não ouviu. Estava obcecada. Previa doses, horários, aminoácidos, proteínas,
agachamentos. Fazia-os de manhã cedo, à tarde, à noite e até mesmo de madrugada.
Só não tinha previsto que onde havia pôr de sol, livros, canções, mistério, metáforas,
cinema, debates, embates de corpos inteiros, agora só tinha nádegas. Elas
haviam tomado conta de tudo. Como a mãe num filme de Woody Allen. Como uma
praga.
Mas
a Lurdinha e o Paulo se safaram de verdade. No sonho decisivo, ela entrava num
shopping do arrabalde, ia até um brechó e readquiria as próprias nádegas. Quase
de graça.
Quando
acordou, o sol ainda não tinha aparecido. Lurdinha chamou o Paulo e viram o
amanhecer. A vida retomava o viço, com azul no céu, café na cama, olho no olho.
E, sobretudo, com as nádegas no lugar das nádegas.
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