quinta-feira, 24 de agosto de 2017



24 DE AGOSTO DE 2017
DAVID COIMBRA

O cachorro-quente

Ergui a sobrancelha esquerda. Espetei o dedo indicador em direção ao firmamento. E anunciei com solenidade:

- Agora, meu filho, vou te levar para comer o melhor cachorro-quente do mundo.

Ele arregalou os olhos:

- Uau. E lá fomos nós. Pisávamos na calçada irregular da Avenida Independência, a umas cinco ou seis quadras de distância, e decidimos ir a pé, que faz bem para a saúde. Fui apontando para o belo casario do século passado, hoje quase em ruínas, que decora trechos da rua:

- Aqui viviam os estancieiros ricos do Rio Grande do Sul. Eles tinham suas terras no sul do Estado, onde os bois pastavam devagar e o tempo passava mais devagar ainda. Lá, ganhavam dinheiro; aqui, gastavam dinheiro.

- Devia ser uma rua bonita - ele comentou.

- Era... Era bonita... - divaguei, meio nostálgico. - Olha aqui - apontei para a esquerda. - Aqui tinha um restaurante que ficava aberto a noite inteira. Muitas vezes vim a este lugar na última curva da madrugada, para tomar sopão e restaurar as forças exauridas depois da esbórnia.

- Madrugada é hora de dormir - ponderou meu filho, com o que concordei.

- Lá do outro lado da rua - indiquei com a cabeça. - Na esquina. Lá havia um dos mais famosos bares alemães da cidade. Porto Alegre já foi uma cidade mais germânica, uma cidade que usava trema e muitas consoantes... Aquele bar servia um filé rahmschnitzel que a gente comia aos soluços, de tão bom.

- Aaah... Um filé... - suspirou aquele carnívoro mirim.

- Neste bar, uma vez, um amigo meu foi flagrado pela namorada dançando em cima de uma mesa abraçado a duas mulatas, durante um Carnaval.

Antes que meu filho perguntasse o nome do amigo e quisesse me obrigar a cometer uma indiscrição, anunciei:

- Chegamos!

Ele olhou para a frente. Impostei a voz para causar impacto:

- Cachorro-quente do Rosário! O melhor cachorro-quente do mundo!

- Por que Rosário?

- Por causa deste colégio - bati com a palma da mão na parede vetusta. - Um dos colégios tradicionais da cidade. Meu amigo Diogo Olivier estudou no Rosário. Aprendeu muitas coisas, entre elas a comer o cachorro-quente ali da carrocinha sem deixar uma única ervilha cair no chão.

- E o que é que isso tem de importante?

- Você verá, garoto. Como jantaríamos mais tarde, pedi dois mínis com duas salsichas e tudo dentro, sem restrições.

- Mais molho! - eu instava, enquanto o atendente preparava o cachorro. - Mais queijo! Muito mais queijo!

Sentamo-nos em um banco da praça para comer. A calçada é larga, tem pelo menos cinco metros. O lugar estava limpo e bem cuidado. Atrás de nós, uma moça brincava com dois cachorrinhos minúsculos e mais adiante um casal de namorados arrulhava. Achei tudo muito civilizado.

- Porto Alegre não está tão ruim assim - comentei mais para mim mesmo do que para meu filho. Mas ele ouviu e, como está numa fase ufanista, esbravejou:

- Não fala mal da minha cidade!

- Não falei mal - me defendi. - Eu só queria dizer que...

Não completei a frase, porque ele já não prestava mais atenção em mim e sim na quantidade de molho que lhe lambuzava o rosto e o pescoço e o peito e até os tênis.

- Meu Deus! - exclamou.

- Viu como é importante aquele aprendizado do Diogo?

Gastei uma dúzia de guardanapos para limpá-lo. Fomos embora caminhando pela avenida.

- Gostou? - perguntei. - Melhor que o hot dog clássico americano.

Sorri, contente. No próximo passeio, vou revelar a ele os mistérios da Rua da Praia e, quem sabe, levá-lo para jantar aquela à la minuta que o Jorge Barnabé jura ser a melhor da cidade.

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