quinta-feira, 24 de agosto de 2017


22 DE AGOSTO DE 2017
CIDADANIA

Lições de solidariedade

SOBREVIVENTES DO HOLOCAUSTO, o alemão Curtis Stanton e os holandeses Bernard Kats e Johannes Melis palestraram em escola de Porto Alegre

Mais de 70 anos depois do fim da II Guerra Mundial, o alemão Curtis Stanton e os holandeses Bernard Kats e Johannes Melis, sobreviventes do Holocausto radicados no Brasil, continuam contando suas histórias. Foram experiências que por muito tempo mantiveram escondidas até das próprias famílias. Com o término do confronto, disseram eles, não falariam mais sobre as lembranças traumáticas.

Mas há ocasiões especiais em que abrem uma exceção. Stanton, 88 anos, Kats, 80, e Melis, 79, recordaram detalhes da infância vivida durante o regime nazista em um evento do projeto Compromisso Moral e Lições de Solidariedade, que organiza encontros em escolas e universidades brasileiras. Os três europeus veem essa tarefa como um dever para as futuras gerações. Na manhã de ontem, alunos do terceiro ano do Ensino Médio do Colégio Marista Champagnat, em Porto Alegre, receberam a visita do trio, que enfatizou a solidariedade de pessoas dispostas a se arriscarem para salvar suas vidas.

Ao ouvirem sobreviventes de um dos períodos mais marcantes de violação de direitos humanos falarem sobre intolerância, alguns alunos relacionaram a época a episódios de hoje, como as demonstrações de racismo em Charlotsville, nos EUA.

- Não tenho opinião formada do que pode acontecer futuramente, mas não é um problema só dos EUA. Eu sempre me pergunto: o que eu poderia fazer se eu tivesse 25 anos com a cabeça de hoje? Temos que fazer alguma coisa nos nossos círculos de atuação, seja na paróquia, na comunidade - aconselhou Kats.

Stanton era um dos único estudantes judeus em uma escola de Hamburgo. Por causa de brigas com os colegas, foi para um colégio israelita. Tinha de andar 45 minutos de bonde - assim, conheceu melhor a cidade de onde foi expulso em 1941, rumo a Auschwitz, campo de concentração na Polônia, o primeiro dos três pelos quais ele passaria até completar 17 anos.

- Meu pai foi soldado alemão na I Guerra, mas isso não mudou nada para eles (os nazistas) - contou.

Ele viu o pai morrer num gueto, ondem viviam contidos judeus, opositores do regime e outros prisioneiros de guerra. Com 12 anos, Stanton definhava fisicamente devido ao trabalho pesado e à falta de comida. Quando tinha 14, foi transferido para outro campo de concentração junto à mãe. Na entrada, foram separados. Ela foi assassinada em uma câmara de gás. Ele mentiu que tinha 16 anos e foi novamente encaminhado para o trabalho forçado.

- Não sei por qual motivo menti. Até hoje não sei - disse, cogitando a possibilidade de ter morrido com a mãe.

Entre os presos de guerra, conheceu um médico norueguês que o ajudou a melhorar sua saúde. Stanton conseguiu fugir enquanto era transportado pelos nazistas em um caminhão, durante uma ofensiva militar dos Aliados. Acolhido por tropas inglesas, partiu para a França, onde reencontrou o irmão e a irmã. Veio para a América do Sul em busca de trabalho, chegando pelo Uruguai. Instalou-se no Brasil há 59 anos e construiu família.

O Uruguai também foi o primeiro destino sul-americano de Kats. O holandês viu o pai ser preso depois que o país foi invadido em 1940.

- Meu pai foi arrancado de casa, detido na Holanda e depois enviado a um campo de concentração. Após 15 dias, minha mãe recebeu uma carta avisando que ele havia morrido. Lembro até hoje da minha mãe na porta de casa com a carta na mão. Depois daquilo, seus cabelos ficaram grisalhos do dia para a noite - contou Kats, que acabou criado por famílias que abrigavam judeus durante a guerra (ao todo, passou por sete casas).

A família de Melis, um holandês católico, abrigava judeus. Sua casa foi destruída durante um bombardeio. Refugiados em um esconderijo subterrâneo, que logo mais foi ilhado pela enchente, os Melis foram resgatados pelos americanos.

- Eu lembro de ser carregado nos ombros por soldados americanos com água na altura do pescoço - recordou.

Em 1951, a família de Melis veio recomeçar a vida em Porto Alegre, onde ele conheceu sua mulher e vive até hoje.

O QUE OS ALUNOS APRENDERAM

Ao final das palestras, Maria Eduarda Rocha, de 17 anos, foi uma das estudantes que se levantaram e foram falar pessoalmente com Stanton:

- Ele disse que o nazismo não pode acontecer novamente e estava muito emocionado. Eu nunca achei que fosse falar com alguém que passou por isso.

Nicolle Carlet, 16 anos, a aluna que perguntou aos palestrantes sobre o extremismo nos EUA, ficou tocada pelas lições de vida:

- Muito do que se aprende nos livros vimos que aconteceu na vida dessas pessoas, é tudo real. Saio daqui pensando no que posso fazer, como posso mudar alguma coisa, e não posso, nunca, deixar de discutir o que acontece no mundo.

paula.minozzo@zerohora.com.br

Nenhum comentário: