segunda-feira, 28 de agosto de 2017



28 DE AGOSTO DE 2017
CÍNTIA MOSCOVICH

OS BURROS

Alguém muito próximo comentou, não sem susto, que as pessoas, algumas que ele tinha em alta conta, estavam emburrecendo. E dava como exemplo uma polêmica que acusava Chico Buarque de machismo, por causa de Tua Cantiga, canção lançada previamente ao álbum Caravanas, que chegou ao mercado na sexta-feira passada.

De fato, graças às mídias sociais, a gente acompanha bem de perto o cotidiano de pessoas que, em outros tempos, se veria lá muito de vez em quando. A proximidade vai revelando que algumas criaturas que pareciam ter um nível aparentemente sofisticado de exigência são na verdade umas coisas embrutecidas e sem graça, incapazes de dar ou de receber exceto umas obviedades rasteiras, umas desonestidades mentirosas ou umas certezas fabricadas com o mais absurdo dos absurdos - como é, aliás, o improvável machismo atribuído ao Chico.

E dá-lhe a achar que a miss Brasil 2017, a piauiense Monalysa Alcântara, não podia ser negra. E dá-lhe a achar normal expressões como "justiça fiscal" para nomear aumento de impostos. E dá-lhe a achar possível sacrificar animais para conter epidemias de tuberculose. E dá-lhe a subir no palanque com o pior dos inimigos. 

E dá-lhe a mentir para clientes, a julgar em bases falsas, a trabalhar sem autorização. E dá-lhe a ser antiquado, ressentido, recalcado. E dá-lhe a ser egoísta, desinformado, acomodado. E dá-lhe a macaquear banda de rock, músico famoso, chefe de cozinha, publicitário descolado. E dá-lhe a imitar gente honesta sem ter índole para tanto.

Confesso que preferia não tomar conhecimento das pessoas tão de perto.

Confesso que preferia não saber que nossos homens da Justiça gostam de mentiras.

Caravanas é nosso Chico em sua melhor forma. Na música que dá título ao álbum, ele finalmente usa a preceito o Jardim de Alá (em Copacabana), que é invadido por "jovens muçulmanos" (os negros suburbanos), e se vale das palavras "pica" e "saco" da maneira mais bela que alguém jamais usou. Enfim, uma coisa bonita para servir de farol. Luz.

CÍNTIA MOSCOVICH

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