CARLOS HEITOR CONY
'Vamos brincar separados'
RIO DE JANEIRO - "Este ano, tá combinado, nós vamos brincar separados." A marchinha parece coisa do Zé Kéti, não tenho certeza, fez sucesso num ano qualquer dos Carnavais do passado. Prevendo um acidente de percurso, há uma advertência: "Se acaso o meu bloco encontrar o seu, não tem problema, ninguém morreu".
Admiro e louvo de coração, tronco e membros os blocos que saem antes e durante o Carnaval. Só os amaldiçoo quando estou dirigindo e esbarro num deles, dou sempre azar, são os maiores, os mais animados e lentos.
Tenho um amigo que, numa situação dessas, deu uma ligeira cutucada num folião entusiasmado, com uma complicada fantasia, que, depois, ficou sabendo que se tratava de uma alegoria feérica, intitulada "Raízes da Cultura Amazônica, Fauna, Flora e Soberania Ameaçadas". Não houve mortos nem feridos, mas tentaram linchar o motorista, deram pontapés furiosos na lataria. Mais uma vez, a Amazônia fora atingida.
O mundo é pequeno, as ruas são estreitas e os blocos são muitos. Daí a hipótese lembrada na letra da marchinha: "Não tem problema, ninguém morreu". Os abrolhos pessoais de cada um ficam temporariamente suspensos, pelo menos, "até quarta-feira" -que, por sinal, é o nome da marchinha. Ninguém precisa morrer nem promover velório, todos vão em frente, menos o desgraçado motorista que quebrou a cara pegando um bloco imenso, fluvial, entupindo as pistas principais e as ruas vicinais.
Garante o livro de Eclesiastes que há tempo para tudo, inclusive para plantar beterraba ou cenoura, para viver ou morrer. O encontro de dois blocos, "você pra lá, eu pra cá", como diz a marchinha, faz parte do Carnaval e da vida em geral. E ninguém morre, inclusive porque ninguém comete a façanha de morrer duas vezes.
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