20 de março de 2011 | N° 16645AlertaVoltar para a edição de hoje
DAVID COIMBRA
Tudo de ruim que sou
Volta e meia cogito até que ponto venci minha vileza. Porque tenho tendência natural a ser covarde, mentiroso, egoísta, concupiscente, violento e outras coisas bem ruins. Pense num defeito, e é quase certo que o tenho. Pode ser lá no fundo, encolhido num canto da alma como uma cascavel enrodilhada, mas ele está lá.
Eu sei.
O que faço o tempo todo, desde que comecei a identificá-los, décadas atrás, na pré-história da minha infância? Tento domá-los. Tento reprimir minha vileza. E temo que, dependendo da ocasião e do ensejo, ela volte a aparecer, transformando-me, mais uma vez, em alguém de quem não gosto nem um pouco.
Porque, já disse, sei que ela não morreu. Ela está lá, de campana atrás do seu sorriso maligno, e volta e meia bota uma garra para fora. Aí me inquieto. Olho para os lados. Será que os outros perceberam? Será que viram a minha feia covardia? O meu repugnante egoísmo? A face monstruosa da minha ira?
E sinto vergonha. E juro para mim mesmo nunca mais ser assim.
Se houvesse alguma segurança de que ninguém jamais notaria minha canalhice, eu provavelmente seria um canalha consumado. Não um criminoso, que, isso sei, não gosto de fazer mal a nenhuma pessoa, não gosto nem de ver os outros tristes. Mas seria um infrator contumaz. Um burlador. Não o sou porque temo a repressão.
Conhecedor da minha baixeza, costumo impor-me um exercício: quando alguém é apanhado cometendo algo errado, pergunto para mim mesmo se seria capaz de fazer o que ele fez. Eu atropelaria 25 ciclistas, se um bando deles estivesse trancando a rua e eu estivesse com pressa e eles estivessem debochando de mim e me irritando? Não, porque saberia das consequências. Mas, sim, eu TERIA VONTADE. É um ato psicopata e estúpido, mas, reconheço contrito, me ocorreria.
Não faz muito, Renato Portaluppi errou ao invadir o campo e xingar um juiz. Minutos depois, durante a entrevista coletiva, ele reconheceu o erro:
– Eu não podia ter feito aquilo de jeito nenhum.
Admirei o Renato. O mais difícil não é se conter e não cometer a vileza. O mais difícil é, tendo-se cometido a vileza, admitir o cometimento. Renato não me surpreendeu. Em outros momentos, ele demonstrou sua coragem. Quando seu amigo Leandro foi cortado da Copa de 86 por ter fugido da concentração, Renato não apenas confessou que também havia fugido, como pediu para ser cortado.
Mostrou, nesse caso, que não é movido só pela coragem, mas pela lealdade.
Agora, no caso da entrevista para o Kajuru, Renato foi flagrado em erro. Ao ser perguntado se poderia aceitar uma proposta de trabalho do Fluminense, disse para o jornalista que a possibilidade de topar era grande, mas pediu sigilo. O jornalista, traiçoeiro que é, não respeitou o sigilo. Divulgou a gravação da conversa. Renato ficou numa posição desconfortável. E saiu-se com uma tentativa de logro: jurou que achava estar sendo vítima de um trote.
É claro que isso não é verdade. É claro que Renato sabia com quem estava falando. Logo, Renato foi pego cometendo um deslize.
Fiz o exercício: coloquei-me no lugar dele. Fosse eu, iria para o Fluminense? Não. Não iria por lealdade, que prezo a lealdade. Mas lealdade à torcida, bem entendido: à torcida. Como Renato já demonstrou que ele igualmente preza a lealdade, suponho que agiria como eu e não fecharia com o Fluminense, deixando o Grêmio no meio do caminho da Libertadores.
Por que, então, dar aquela resposta ao jornalista? Por que mentir? Eu mentiria? Talvez, para me valorizar profissionalmente. Chego a sentir o estômago enrolado ao admitir que poderia mentir, mas poderia.
Daria uma desculpa para mim mesmo, diria que um profissional é mais valorizado se tem uma proposta de emprego, e iria em frente: mentiria para o jornalista traiçoeiro. Foi o que acho que Renato fez. Não é grave. Mas fez. Eu faria. Vira e mexe e não consigo controlar o calhorda que há em mim.
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