21 DE AGOSTO DE 2017
DAVID COIMBRA
Infidelidade conjugal
Infidelidade conjugal. Houve duas palpitantes manifestações de mulheres brasileiras a respeito de infidelidade conjugal nos últimos dias. A ex-namorada de um guitarrista da banda Apanhador Só publicou um texto no Facebook revelando (denunciando?) que ele a traíra 40 vezes. Antes disso, a atriz Deborah Secco reconheceu (confessou?) em uma entrevista que traiu todos os seus ex-namorados e ex-maridos, sem exceção e com gosto.
A declaração de Deborah foi recebida com certa naturalidade. O texto da outra moça, não. A banda Apanhador Só teve até de cancelar um show que faria em Belo Horizonte, devido à repercussão negativa.
Pouco me importa analisar se Deborah e a namorada do guitarrista estavam certas ou erradas ao expor desta forma suas intimidades. Ninguém sabe o que se passa no âmbito de um casal. Muitas vezes, cada um dos dois integrantes do casal tem uma versão diferente sobre o que acontece com eles. Também não quero especular se o guitarrista agrediu ou não a namorada. Agressão sempre é grave e condenável, mas levaria o texto para outro lado.
O que achei mais interessante foi, exatamente, o fato de elas se manifestarem de público a respeito da questão da infidelidade conjugal. Demonstra uma mudança importante na sociedade brasileira.
A noção de infidelidade é exclusivamente cultural. Há casais que toleram a infidelidade, há os que até a incentivam, há de tudo. Quando surgiu, porém, o interdito ao que se chama modernamente de "traição" tinha um objetivo prático.
A cornice foi inventada pelo capitalismo.
Durante centenas de milhares de anos, o ser humano foi nômade. Movimentava-se em pequenos grupos sobre a Terra. Ninguém tinha casa ou gleba, ninguém era dono de nada, exceto, talvez, poucos objetos de caça e sobrevivência. Não havia, tampouco, ideia de família como a concebemos hoje. Em geral, grupos nômades funcionam como clãs, com a coletividade cuidando das crianças e dividindo a comida e os bens de que necessitam. Nesses clãs, vigora bastante flexibilidade sexual. Ou seja: ninguém é de ninguém.
Mas há cerca de 12 mil anos o ser humano se fixou à terra para a lida da agricultura. Criou, assim, a propriedade. Criando a propriedade, criou o roubo. Para preservar sua propriedade do roubo, para mantê-la com ele e com os seus, o homem precisava de uma família forte, formada por filhos leais. Por isso, era fundamental que seus filhos fossem realmente dele. Num tempo sem teste de DNA, só a mãe tinha certeza absoluta de que o filho era dela. Afinal, o filho saíra de dentro dela. Ao homem restava a desconfiança.
Como garantir que aqueles filhos eram mesmo dele e que sua herança seria conservada em sua família e não passaria para a de algum aventureiro metido a garanhão?
Resposta: garantindo que a mulher faria sexo exclusivamente com ele. Donde, a valorização da virgindade e da fidelidade.
É por esse motivo que a mulher que traía era vilipendiada e o homem que traía era incensado. Porque o homem estava se comportando como conquistador, espalhando seus genes e, quem sabe, amealhando propriedade e poder desta maneira, enquanto que a mulher comprometia a família com sua infidelidade.
Isso mudou por várias razões, a maioria delas econômicas, como a necessidade de a mulher ingressar no mercado de trabalho nas duas guerras mundiais. Assim, a infidelidade conjugal feminina não é mais vista com escândalo, no Ocidente. Uma mulher como Deborah Secco pode contar que traiu todos os ex-namorados e ex-maridos e ninguém pensará em apedrejá-la por isso. Mas o guitarrista que traiu, sim, foi apedrejado. Uma virada espetacular. Uma nova moral. Um novo tempo.
DAVID COIMBRA
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