17 de junho de 2016 | N° 18558
DAVID COIMBRA
Aconteceu na cidade cinza
Estávamos em Ulsan, na Coreia do Sul. Ulsan é cidade industrial, feita de ferro e fumaça. O repórter Mauro Leão, de O Dia, passava o tempo todo repetindo que Ulsan era mais triste do que enterro de pobre em dia de chuva.
Mas... que fazer? A Seleção Brasileira havia escolhido Ulsan como sua sede, tínhamos de ficar lá pelo menos um mês. Era a Copa de 2002, a Copa do Oriente Longínquo, e, como o Oriente era tão longínquo quanto caro, poucos jornalistas brasileiros tinham sido enviados para fazer a cobertura.
Nós, da RBS, estávamos em 12, número quatro vezes menor do que os que foram à Copa anterior, na França. A vantagem é que tínhamos acesso fácil aos jogadores. Luiz Felipe dizia que eles precisavam sentir a pressão para não tremer na hora decisiva. Funcionou. Talvez tenha sido isso que faltou à Seleção de 2010, que, ao primeiro revés, esfumou-se como uma paixão de Carnaval.
Assim, assistíamos a todos os treinos, inclusive os táticos. Num desses, vi uma cena que jamais esqueci: Luiz Felipe tentava corrigir o posicionamento do time. Treinava a jogada, parava onde via erro, mandava repetir. Era aborrecido para os jogadores, e para nós também. Mas Luiz Felipe não desistia: ensaiava a jogada e ensaiava de novo e ensaiava outra vez. Chato.
Em meio às repetições, ocorreu o episódio que me chamou a atenção. Episódios, na verdade: para mostrar a Ronaldo como ele devia se posicionar, Luiz Felipe pegava-o forte pelo braço e o arrastava até o ponto exato em que devia ficar, como se lidasse com uma criança.
– Aqui, ó! – gritava Luiz Felipe. – Aqui! – e apontava para o chão. Isso aconteceu várias vezes. E Ronaldo sempre obedecia de boa vontade. Disciplinadamente. Humildemente.
Ronaldo não era um jovem nem um jogador qualquer. Em 2002, Ronaldo já havia se transformado no Fenômeno, já era o melhor do mundo, já era rico e consagrado.
Para você ter ideia do que representava Ronaldo, recuarei cinco anos. Em 1997, na Copa América da Bolívia, ele não vinha jogando bem. Parecia desconcentrado por estar negociando renovação de contrato. Chegou o jogo decisivo contra o Paraguai, que tinha uma seleção muito boa, com Chilavert no gol e Gamarra na zaga. Chilavert passou a semana provocando Ronaldo. Mas, na véspera da partida, ele renovou o contrato. Aí avisou:
– Amanhã, eu vou jogar. Jogou. Gamarra ficou a noite inteira bufando atrás dele, sem nunca alcançá-lo, o Brasil venceu por 2 a 0 e Ronaldo foi o melhor em campo. Depois do jogo, fomos entrevistar Chilavert e ele filosofou:
– Há coisas mais importantes na vida do que um jogo de futebol.
No ano seguinte, na Copa, Ronaldo arrastou sozinho o Brasil para a final. Na decisão da semi, a Holanda era melhor e, se houvesse justiça na vida e no futebol, ganharia a partida. Mas o Brasil se fechou e deixou Ronaldo lá na frente. Ele pegava a bola e investia pelos intestinos da defesa, os zagueiros entravam em pânico, se batiam, era preciso quatro ou cinco para tentar pará-lo, e ainda assim não conseguiam. Porém... na finalíssima, você sabe... Ou melhor: não sabe. Ninguém sabe o que aconteceu. Terá sido a loirinha Susana Werner e seus encontros com Pedro Bial a causa das convulsões de Ronaldo antes do jogo?
É possível. Certas mulheres são mais fatais do que um rifle AR-15.
Mas o que dizia é que Ronaldo era um supercraque em 2002, e Luiz Felipe o tratava como um juvenil. Foi por isso que o Brasil ganhou a Copa. Felipão tinha energia e autoridade para dizer aos jogadores o que fazer. E eles o atendiam. Falo de Felipão e Ronaldo para chegar a Tite e Neymar. Mas não cheguei ainda. Chego amanhã.
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