09 de junho de 2016 | N° 18551
CARLOS GERBASE
A CRISE DO VOYEUR NO CINEMA
Num texto clássico dos anos 1970, Prazer sexual e cinema narrativo, a feminista inglesa Laura Mulvey afirma que “o inconsciente da sociedade patriarcal estruturou a forma do cinema”. É um ensaio de cunho psicanalítico e político, que acusa frontalmente a indústria cinematográfica de ser “falocentrista” e de representar a mulher como “a ameaça da castração, pela ausência real do pênis”. Pincei esses trechos por serem de fácil compreensão. No ensaio, há parágrafos inteiros que só podem ser compreendidos por especialistas em Lacan.
Mulvey continua na ativa, abordando outros temas, mas a cada entrevista ainda é obrigada a falar daquele seu ensaio, que teve grande impacto e lançou essa ideia de que os cineastas homens só conseguem ver as mulheres como objetos de seu desejo, nunca lhes dando real protagonismo. E ainda pior: todos os filmes – até os feitos por algumas mulheres! – assumem que o desejo do(a) espectador(a) é masculino, o que transforma o público – independentemente de gênero – num eterno voyeur.
Será que o cinema mudou? Será que as acusações de Mulvey surtiram algum efeito? Para as feministas mais radicais, a resposta é não. Mesmo um filme que têm duas mulheres como protagonistas numa relação homossexual (Azul é a cor mais quente) foi criticado por ser machista e voyeurista. O feminismo de hoje não quer apenas discutir a posição subalterna do sexo feminino. Ele quer derrubar a heterossexualidade como norma, ele quer nos libertar de uma escolha de gênero desnecessária e limitadora dos desejos. O problema não é mais a opressão do falo, e sim a opressão das decisões que o falo (ou sua ausência) provoca, levando a identidades eróticas ultrapassadas (homem, mulher, gay, trans) e que não fazem mais sentido.
Talvez por isso um filme delicado como A garota dinamarquesa tenha provocado o ódio de alguns donos de cinema, que não queriam exibi-lo. Se o voyeurismo ainda é arma importante para ampliar as bilheterias, como um filme que não define o gênero de seus personagens provocará o desejo do espectador mais tradicional? É possível desejar quem não definiu claramente seu desejo? Não sei, mas o texto de Mulvey envelheceu, e o voyeur tradicional está em crise.
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