terça-feira, 28 de junho de 2016


28 de junho de 2016 | N° 18567 
DAVID COIMBRA

Caçapava vive

Caçapava morreu. Caçapava também podia morrer – uma surpresa. Ninguém imaginaria isso, nos anos 1970. Naquele tempo, Caçapava parecia indestrutível.

Caçapava foi o primeiro volantão do Brasil, o primeiro centromédio cão de guarda, o buldogue na frente da área, o protetor dos zagueiros, o zelador das laterais. Zito foi seu antecessor, mas Zito era uma bandeirante perto de Caçapava. Em geral, os centromédios eram jogadores como o volante que disputava posição com Zito na Seleção: Dino Sani, um clássico, um distribuidor de jogo, antes de um marcador. Clodoaldo, tricampeão do mundo em 1970, seguia essa tradição. E Falcão também.

Caçapava mudou tudo. O futebol brasileiro mudou um pouco por causa de Caçapava. Por causa de um determinado jogo: a semifinal do Campeonato Nacional de 1975, Inter versus Fluminense.

O Fluminense era o favorito. Sua equipe era chamada de supermáquina, montada graças às habilidades e à ousadia do presidente Francisco Horta, que conseguiu fazer trocas vantajosas com os outros clubes do Rio e, o mais importante, conseguiu contratar o melhor jogador do Brasil, Roberto Rivellino.

Mas o Flu não tinha só Rivellino: tinha Paulo César Caju, Dirceu, Marco Antônio, Carlos Alberto Pintinho, Doval... Era mesmo uma máquina.

Até aquele jogo, no Maracanã, o meio-campo do Inter formava com Falcão e Carpegiani mais atrás e Escurinho na frente. Na véspera da partida, o técnico Rubens Minelli reuniu os jogadores e perguntou:

– Vocês querem ganhar esse jogo?  Claro que todo mundo queria. Então, Minelli acrescentou:

– Para isso, temos que jogar com o Caçapava no lugar do Escurinho. A missão de Caçapava seria, justamente, anular Rivellino.

Falcão me contou que era o colega de quarto de Caçapava na concentração. No sábado que antecedia o jogo, Falcão disse para ele:

– Seguinte, negão: cuida a perna esquerda dele. Não o deixa dominar a bola com aquela perna esquerda. Aquela perna esquerda é um perigo!

– Pode deixar – rosnou Caçapava.

No dia seguinte, na primeira bola que foi passada a Rivellino, Caçapava chegou com o peito, com o pé, com os dois pés, com tudo, e o mandou para a lateral. Rivellino levantou-se a custo, espanou a poeira do uniforme, cofiou o bigode e estremeceu. O resto da tarde foi igual. A célebre canhota de Rivellino quase não tocou na bola, e o Inter venceu e se classificou para a final.

Essa façanha, de certa forma, fez do Inter o que o Inter é hoje. Aquela marcação irrecorrível de Caçapava no grande Rivellino permitiu o primeiro grande título do clube e solidificou o maior time da história do Inter.

É famosa e sempre citada a frase de Figueroa: “Com Caçapava na frente da área, jogo até os 45 anos de idade”. Porque se tratava de uma verdade líquida. Caçapava esbarrava nos atacantes e quebrava a jogada, para Figueroa sair limpo com a bola, de peito estufado e cabeça erguida. Figueroa podia ser elegante porque, antes dele, Caçapava fora grosso. Era uma dupla que se completava. Um dia, Figueroa me contou que ele passava o jogo orientando o Caçapava:

– Pega o cara na esquerda! Volta! Agora passa ali! Dá aqui!

Achei que talvez Figueroa estivesse se exibindo. Que nada. Quando fui falar com Caçapava, ele relatou, sem que perguntasse:

– Era o Figueroa que me dizia o que fazer, quando eu retomava a bola. Um humilde, o Caçapava.

Depois dele, o chamado “primeiro volante” se transformou no guardião da defesa. Vitor Hugo, Dinho, Batista, Dunga, Mauro Silva, todos são herdeiros de Caçapava.

Havia quem achasse Caçapava um tosco, mas com o tempo ele foi adquirindo confiança e demonstrando sua técnica. Começaram a ser notados o passe escorreito, o lançamento preciso e até o chute forte de meia distância. Acabou na Seleção.

Todos os times queriam ter um Caçapava na frente da área, porque ele facilitava o jogo dos zagueiros e dava liberdade aos meias. Falcão pôde sair das imediações da meia-lua e alvoroçar-se no campo de ataque graças a Caçapava. Se em 1982 houvesse um Caçapava na frente de Oscar e Luisinho, hoje uma sexta estrela estaria costurada no peito da camisa da Seleção Brasileira.

Caçapava amuralhava uma defesa. Caçapava dava segurança ao time. Caçapava parecia impossível de ser driblado, impossível de ser vencido, impossível de se cansar, impossível até de morrer. Mas morreu. Ou talvez não. Porque, na galeria dos heróis do futebol, Caçapava vive.

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