segunda-feira, 6 de junho de 2016


06 de junho de 2016 | N° 18548 
DAVID COIMBRA

Como Ali se tornou campeão


Em seu ótimo livro autobiográfico, Malcolm X conta que, antes da histórica luta entre Cassius Clay e Sonny Liston pelo campeonato mundial de pesos pesados de 1964, ele mostrou a seu amigo Clay algumas fotos do treinamento do adversário, que ocorria em Nova York. Nas fotos, apareciam sacerdotes brancos como seus “conselheiros espirituais”. Malcolm acrescentou:

“Cassius Clay, sendo muçulmano, não precisava que ninguém lhe dissesse como o cristianismo branco tratara o homem preto americano”.

E então lhe disse:

– Essa luta é a Verdade. A Cruz e o Crescente vão se enfrentar num ringue pela primeira vez. É como uma Cruzada moderna, com um cristão e um muçulmano se enfrentando, as câmeras de televisão transmitindo para o mundo inteiro o que vai acontecer! Acha que Alá propiciou tudo isso para que você deixe o ringue de outra forma que não como campeão?

Mais tarde, durante a pesagem, Clay gritava: – Está profetizado que serei o vitorioso! Não posso ser derrotado! Quando lhe perguntaram o que faria para vencer, respondeu:

– Vou voar como uma borboleta e ferroar como uma abelha!

Mas ninguém apostava nele. Liston era mais forte, dono de golpes tão poderosos, que assombravam o mundo do boxe. Vinha de 28 vitórias consecutivas e, na última luta, massacrara Floyd Patterson.

Liston esperava uma vitória rápida e, nos primeiros assaltos, partiu para o ataque com ferocidade. Mas Clay, mais jovem e mais rápido, era mestre na esquiva. Dançava pelo ringue, mantinha o controle do centro e, a cada soco de Liston, girava a cintura, fazendo recuar o queixo dois ou três centímetros. O punho enorme de Liston passava sem atingi-lo e ele sentia no rosto o deslocamento do ar.

Clay minou a resistência de Liston, cansou-o e levou-o ao nocaute técnico.

Cassius Clay era campeão.

Malcolm X relatou como foi a comemoração da façanha:

“Provavelmente nunca houve uma festa tão tranquila para um novo campeão do mundo. O rei juvenil do ringue foi para meu motel. Tomou sorvete, bebeu leite, conversou com o astro do futebol Jimmy Brown e outros amigos, além de alguns repórteres. Sentindo sono, Cassius tirou um cochilo em minha cama e depois foi para casa”.

Um mês depois, o campeão passou a se chamar Muhammad Ali. O nome havia sido escolhido por Elijah Muhammad, o mentor de Malcolm X, líder da seita conhecida como “Muçulmanos Negros”.

O islamismo surgia como uma saída para os negros americanos, num tempo em que os direitos civis mal tinham sido conquistados. Até os anos 60, os Estados do Sul discriminavam legalmente os negros. Havia bares, banheiros, bebedouros e assentos nos ônibus destinados exclusivamente para brancos.

Foi através da religião que os negros se elevaram, nos Estados Unidos. De um lado, o islamismo agressivo de Elijah Muhammad, pregando um Estado negro, separado do que chamava de “demônio branco”. Do outro, o cristianismo de Martin Luther King, pregando a resistência pacífica e a integração.

Mais tarde, Malcolm X também passou a defender a integração, e isso o tornaria inimigo do antigo mestre. Suspeita-se de que foi a mando de Elijah que Malcolm foi assassinado em Nova York, exatamente um ano depois da luta entre Ali e Liston.

Luther King viveu ainda mais três anos, e também foi assassinado. As mortes de Malcolm X e de Luther King fizeram de Ali o maior líder da campanha pelos direitos civis dos negros americanos. Quando ele foi convocado para lutar no Vietnã, recusou-se:

– Por que eu iria atirar nos vietcongues? Eles nunca me chamaram de crioulo...

Nocaute.

Ali, que sempre foi um lutador e que simpatizava com os muçulmanos mais radicais do seu tempo, venceu ao optar pela paz. Não foi uma contradição. Porque Muhammad Ali não usava os punhos para vencer: usava a inteligência.

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