08 de junho de 2016 | N° 18550
DAVID COIMBRA
Sou uma pessoa extremamente calma
Queria ser uma pessoa extremamente calma. Uma vez, alguém me disse que eu era uma pessoa extremamente calma – um sujeito que selecionava candidatos a vagas de trabalho lá na empresa dele. Não lembro da empresa, só lembro que precisava de emprego e não conseguia. Pensei: “Talvez não esteja sendo escolhido porque pareça nervoso”. E decidi: “Hoje serei uma pessoa extremamente calma”.
Pois deu certo. No final da seleção, o homem olhou para mim com ar de admiração e observou:
– Você é uma pessoa extremamente calma. Fiquei exultante.
Mas ele não me chamou para a vaga. Vai ver não queria uma pessoa tão calma como eu.
Eu devia ter uns 16 anos quando aconteceu isso. Desde então, tento ser uma pessoa extremamente calma, e não tenho obtido sucesso. Volta e meia me irrito. Já havia até desistido de ser uma pessoa extremamente calma, mas no domingo passado aconteceu algo.
Foi o seguinte:
Chovia (adoro começar uma história com “chovia”). No fim da tarde, deu uma arrefecida, e falei para a Marcinha e o Bernardo:
– Que tal irmos àquela confeitaria que tem perto da academia de ioga?
Aquela confeitaria tem um tiramisu ótimo, cheio de leite condensado, muito bom com café.
Eles gostaram da ideia. Cada um de nós pegou seu guarda-chuva e saímos. A confeitaria fica a umas seis quadras de distância. Bem. Assim que pisamos na calçada, a chuva recrudesceu. Não esmorecemos. Seguimos em frente. Do céu desabavam pingos taludos, do tamanho de bolinhas de gude. Ao cabo da primeira quadra, senti os pés irremediavelmente molhados. No meio da segunda, o Bernardo resmungou:
– Por que é que nós saímos de casa?
Tentei animá-los: – Pensem no tiramisu! Pensem no tiramisu!
Mas a chuva agora descia feito cascata. Na terceira quadra, estávamos ensopados até os joelhos. Começava a me impacientar, quando apareceu aquela japonesa.
Ela vinha da academia de ioga – era óbvio, pela roupa que usava. Era uma japonesa alta, raro entre japonesas, e também magra e de pele muito clara. Não tinha guarda-chuva nem capuz nem nada. Caminhava devagar, com a fronte alta, deixando a chuva lhe lavar o rosto, olhando impávida e serena para as folhas gotejantes das copas das árvores.
Japoneses, em geral, são pessoas extremamente calmas. A moderação e a paciência são dos predicados mais valorizados pelos orientais. E aquela japonesa, para arrematar, fazia ioga. Devia meditar, e tal.
Observei-a. Ela não estava apenas se movendo sob a chuva, estava sorvendo cada passo daquela caminhada, estava aproveitando o momento. Estava feliz.
A calma é que lhe propiciava a felicidade. A calma! Senti o entusiasmo tomar conta de mim, ao testemunhar a cena da japonesa na chuva.
– Vejam que pessoa extremamente calma – disse para a Marcinha e o Bernardo. – Vejam só!
Eles olharam. Acrescentei:
– A partir de hoje, serei uma pessoa extremamente calma! – resolvi. – Serei mesmo! Uma pessoa extremamente calma!
A chuva se adensou. A Marcinha expeliu um pequeno grunhido. O Bernardo falou:
– Ainda não sei por que nós saímos de casa.
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