quinta-feira, 9 de junho de 2016



09 de junho de 2016 | N° 18551 
DAVID COIMBRA

O ladrão arrependido

Há um detalhe revelador na história do ladrão que devolveu o carro para a moça de Canoas. É uma frase do bilhete em que ele pede desculpas.

Se você não sabe o que aconteceu, foi isso mesmo que aconteceu: o sujeito roubou o carro à mão armada, arrependeu-se, devolveu-o e deixou a seguinte explicação:

“Moça, desculpa ter roubado teu carro, me arrependi. Abandonei ele na rua 1º de maio, não tirei nada dele. Só a mochila que eu ia dar para o meu filho, mas me arrependi e vou abandonar ela perto do La Salle. Desculpa. Também sou vítima da sociedade, mas não sirvo para ladrão. A arma era de brinquedo. Que o susto sirva de exemplo para nós dois. Para mim também não foi fácil. Vou continuar procurando emprego. Nunca deixe a chave na ignição. Você é muito linda e desculpe pelo que fiz você passar. Obs: A bolsa eu deixei você levar na hora”.

O bilhete é breve, mas diz muito. O arrependimento depõe a favor dele, sem dúvida. Como diz a Bíblia, haverá no céu mais júbilo pela entrada de um pecador que se arrepende do que pelo ingresso de 99 justos que não precisam se arrepender.

Ótimo para os arrependidos.

Mas essas são coisas dos tribunais celestes e terráqueos. O ponto que me chamou a atenção foi outro. Outros, na verdade. Primeiro: no fim da cartinha, o ladrão observa: “Você é muito linda”. Fiquei pensando: se ela fosse feia, ou se fosse um homem, ele se arrependeria? Não terá a beleza lhe amolecido o coração?

Essa é uma das funções evolutivas da beleza. Os filhotes, inclusive os dos humanos, são bonitinhos por isso: para enternecer possíveis predadores.

Seja. O que importa realmente é outro naco de frase. É quando ele diz: “Também sou vítima da sociedade”.

Que declaração bem brasileira, essa. Euclides da Cunha declara em Os sertões: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Se escrevesse sobre toda a população, diria:

“O brasileiro é antes de tudo uma vítima”.

Todo brasileiro é um coitadinho. As mulheres são vítimas dos homens, os negros são vítimas dos brancos, os homossexuais são vítimas dos heterossexuais, os pobres são vítimas dos burgueses, o trabalhador é vítima do patrão, o patrão é vítima dos governantes e seus impostos, o rico é vítima dos bandidos, os bandidos são vítimas da polícia, a polícia é vítima do governo, que lhe paga mal, o Brasil inteirinho é vítima dos países desenvolvidos, que o exploram.

Não existe um único brasileiro que não seja vítima de algo, o que é uma contradição, porque nenhum brasileiro se acha opressor. Ninguém tem culpa de nada, no Brasil. Nenhum brasileiro é responsável por nada do que acontece no país nem por sua própria situação. A culpa é do chefe, do governo, da mídia, do vizinho, da mulher, dos outros. Sempre dos outros.

De quem é a culpa por aquele ladrão arrependido estar desempregado e não poder comprar mochila para o filho? Da sociedade.

O que ele faz, então, para resolver seus problemas? Volta-se contra o culpado: bota uma arma na cintura, mesmo que seja de brinquedo, e vai tomar da sociedade o que acredita que a sociedade lhe deve.

Pensar assim é muito confortável. Você pode fazer o que quiser, está liberado. Você já fez o que devia ter feito: nasceu e, melhor, nasceu brasileiro. Agora, o mundo é que deixe de ser malvado e lhe dê o que você merece.

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