quinta-feira, 2 de junho de 2016


02 de junho de 2016 | N° 18541 
DAVID COIMBRA

O cronista do passarinho na janela

Romualdo é do Ceará. Nome cearense, Romualdo.

Romualdo vivia em São Paulo e hoje mora em Boston, onde faz estágio em um dos grandes hospitais da cidade.

Romualdo sente falta do Brasil. Fala sempre que quer voltar e, sempre que fala, faz uma ressalva:

– Vou ficar com saudade de ouvir os passarinhos.

Ou então: – É bom caminhar por aí ouvindo os passarinhos.

E ainda: – Gosto daqui por causa dos passarinhos.

De tanto o Romualdo se referir aos passarinhos, passei a prestar atenção neles. Não que os ignorasse. É que, para mim, apenas faziam parte da paisagem. Algo que você sabe que está lá, mas não se detém para pensar a respeito. Como o Acre. Nunca penso muito no Acre.

Talvez seja um erro.

Pois, olhando bem, de fato, essa nossa vizinhança está cheia de árvores, e as árvores estão cheias de passarinhos. E de esquilos, mas esquilo é bicho pouco comunicativo, suas atividades são rápidas e silenciosas. Já o passarinho, ele canta e, quando não canta, chilreia, que é uma palavra bem bonita, propícia para a poesia. Digo, então, que o chilreio dos pássaros enche o ar o dia inteiro, por aqui, tornando tudo mais poético.

No meu tempo de Famecos, nós, críticos ferinos, como todos os estudantes de jornalismo, definíamos certos cronistas mais líricos como “cronistas do passarinho na janela”. Definição pejorativa, naturalmente. O cronista do passarinho na janela era aquele escrevinhador parnasiano, que produzia um texto para fazer estilo, mas sem relevo, sem objetividade, só forma e nenhum conteúdo, e Marx já disse que, não havendo conteúdo, forma é que não haverá.

Não sei quem de nós criou essa classificação, “cronista do passarinho na janela”, mas ela é ótima, espero que tenha sido eu. Imagine.

O cronista está sentado à mesa de trabalho e, diante de seus olhos, jaz a folha em branco (hoje tela), evidência de que ele não tem ideia alguma sobre o que escrever para o dia seguinte. Então, um pequeno pardal vem do céu de azul perfeito e pousa na janela, ao lado dele. O cronista se deixa encantar por aquela delicada criatura alada e, tomado pela flama da inspiração, põe-se a tecer uma ode às singelas maravilhas da natureza.

Nós nos divertíamos muito com essa imagem, mas logo passávamos para assuntos mais sérios e atinentes a nossa capacidade intelectual superior, como a salvação do Brasil e a revolução que produziríamos no jornalismo.

Hoje, ao ouvir Romualdo tanto repetir que sentirá falta dos passarinhos, penso que os negligenciei mais do que devia. Caminhar pela rua ouvindo realmente o canto dos passarinhos não é melhor do que caminhar pela rua pensando em Temer, Dilma ou nas mazelas da sociedade hipócrita? Um passarinho na janela não vale mais uma crônica do que um projeto que tramita na Câmara?

Romualdo está certo. Não salvarei o Brasil. Não revolucionarei o jornalismo. Festejarei o passarinho na janela.

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