sábado, 4 de junho de 2016



04 de junho de 2016 | N° 18547 
L.F. VERISSIMO

O nome da Serpente


Na sua peça The Coast of Utopia (A Costa da Utopia), Tom Stoppard põe na boca de Michael Bakunin um pensamento sobre a queda que condenou o Homem à infelicidade. “Uma vez”, diz Bakunin, “há muito tempo, no começo da História, éramos todos livres. O Homem integrava-se com a natureza e vivia em harmonia com o mundo, e portanto era bom. E então uma serpente entrou neste paraíso”.

Para o anarquista Bakunin, o nome da serpente era “ordem”. Matéria e espírito se separavam. “O Homem não era mais inteiro, mas impelido por ambição, cobiça, ciúme, medo. O conflito tornou-se a condição da sua vida – o indivíduo contra seu vizinho, contra a sociedade, contra si mesmo – e a Idade de Ouro acabou”, segundo Bakunin. A serpente trouxera a desordem. O Homem só poderia criar uma nova Idade de Ouro e tornar-se livre outra vez destruindo o que tinha destruído seu paraíso. A ordem.

Para um socialista, ao contrário, ordem – ou organização social – é o que salva o Homem da sua pior natureza. Evita conflitos e traz a harmonia, portanto não é um bom nome para a serpente. Já para um fascista, só a submissão a uma ideia e a uma autoridade integradoras traz a felicidade, ou a ordem no bom sentido. Como elogio, não como nome de serpente. E para um liberal, se a serpente nos tirou do paraíso mas inaugurou o homem competitivo, então viva ela, seja qual for o seu nome.

Que nome merece a serpente? Acho que um bom nome seria “precisão”. Foi quando desenvolveu o dedão opositor e se tornou capaz de, primeiro, catar pulgas com mais eficiência e eventualmente esgoelar o próximo e fabricar e empunhar instrumentos sem deixá-los cair – enfim, quando se tornou preciso – que o Homem começou a sair do paraíso. Acabou a Idade de Ouro da inabilidade digital, que nos igualava aos outros animais e nos impedia gestos especulativos, como o de segurar um cristal contra o Sol e ficar filosofando sobre a luz decomposta em vez de se integrar com a natureza como um bom bicho.

O dedão opositor está nas origens do arco e flecha, daí para o zíper e as centrais nucleares foi um pulo – no abismo. A nossa queda começou pelo polegar.

Na mesma peça, o Bakunin de Stoppard consola um amigo, desesperado com as seguidas derrotas do seu ideal socialista pelo reacionarismo. “A reação é apenas a ilusão ótica do rio que parece correr para trás, quando o rio corre sempre para o mar, que é a liberdade ilimitada e indivisível!”. Um consolo para desesperados de todas as épocas.

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