sábado, 11 de junho de 2016



11 de junho de 2016 | N° 18553
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

UM DELATOR EM CONSTRUÇÃO

Etimologicamente, a palavra antipatia se origina do vocábulo grego antipatheia, formado pela junção dos termos anti (contra) e patheia (afeição), ou seja, é um substantivo que dá nome ao oposto da afeição – uma contra-afeição. Concordo que este sentimento é mais fácil de sentir do que de explicar. Como pode ser construída à primeira vista, ela merece, nesta condição, o rótulo de antipatia instantânea, que seria criada no consciente do indivíduo tendo como base experiências negativas do passado e que estão “presas” no subconsciente. 

Estima-se que, quanto maior a frustração relacionada com a experiência prévia desagradável, mais intensa será a reação quando houver um estímulo a lembranças negativas. Certamente por isso, os terapeutas recomendam que se dê uma nova chance aos relacionamentos que geraram antipatia instantânea. Nunca tive esta segunda oportunidade e admito que também não lamentei por isso e, se surgisse agora, não saberia o que fazer com ela.

Ele era considerado um cara inteligente, isso ninguém discutia, e muito antipático, disso ninguém discordava. Não era da nossa turma, de modo que o convívio era esporádico e superficial, mas a marca que guardei dele era imperdoável: não só tinha dedurado os colegas, como se orgulhava disso.

Na faculdade, havia uma disciplina pesadelo e, à medida que se aproximavam as provas, o pavor era geral. Contava-se que, neste clima em que se misturavam ameaças de suicídio com promessas candentes de transformação, confissões de culpa e ensaios de arrependimento, aquela turma recebeu um emissário do céu: alguém entrara no laboratório à noite e surrupiara as provas. Teria havido uma reunião de emergência para se decidir o quanto cada um precisava para livrar a cara. A norma era simples: ninguém seria promovido a gênio para não despertar suspeita, e todos teriam que se contentar com os “acertos” necessários para a prevenção da tragédia.

Com tudo acertado, o bando de felizardos foi se encontrar com a nossa turma no bar Alaska, onde durante duas décadas funcionou uma espécie de fórum dos estudantes de Medicina da UFRGS. Daqueles debates infindáveis, regados ao melhor chope da cidade, além das ressacas, sempre lembrarei das nossas certezas, e ainda hoje suspeito que, se aquelas propostas tivessem resistido à luz do dia, teríamos amanhecido melhores. 

Nós intuíamos que aquela era a mais saudável das memórias de uma juventude idealista e ingênua, e velávamos por ela, naquela espécie de santuário paradoxal, em que misturávamos, em doses generosas, amizade, parceria, esperança e as melhores intenções. E, vá lá, uma cota de vagabundagem que a gente também ficava muito cansado de ser tão idealista.

Pois foi justamente neste clima de pureza absoluta que, dois dias depois, a história dos nossos colegas de trago explodiu como uma bomba de efeito desmoralizante: dera tudo errado. Um estudioso, indignado que uma “tropa de vagabundos” pudesse salvar a pele sem estudar, denunciara o golpe. Mais da metade da turma quebrara a cara e nem fora necessário investigar o culpado. Ele se apresentara, orgulhosamente.

Passadas essas décadas, ainda sinto náusea quando penso naquele episódio e tento, sem conseguir, entender a motivação. De qualquer modo, sempre que a mídia anuncia novas delações premiadas, eu dou uma espiada. Pode ser fantasia minha, mas que ele tem o perfil, ah, isso ele tem. E nem precisaria maquiar o caráter.

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